Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki

A pistola de Janot

Clima de polarização nos deixa em alerta para escalada de violência

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São Francisco, Califórnia, novembro de 1978. Dan White, um policial conservador, ex-supervisor (equivalente a vereador) que havia renunciado ao cargo, entra por uma janela do porão da City Hall (para evitar o detector de metal) e se dirige ao gabinete do prefeito George Moscone.

Após uma breve discussão, White saca um revolver do paletó e dá quatro tiros no prefeito. Enquanto recarrega a arma, se dirige à ala oposta do imponente palácio e intercepta Harvey Milk, ativista gay e o primeiro supervisor (e pessoa pública) abertamente homossexual a ser eleito nos Estados Unidos. Pede para ele entrar em seu gabinete e atira cinco vezes à queima-roupa.

O duplo assassinato, registrado em filmes premiados com Oscar, é uma referência para o que poderia ter ocorrido no STF se Rodrigo Janot, o ex-procurador-geral da República, tivesse levado a cabo a intenção de matar o ministro Gilmar Mendes.

As circunstâncias são outras, mas o clima político de polarização que vive o Brasil desde 2013 (e que também estava presente, de uma maneira diferente, na São Francisco dos anos 1970) nos deixa em estado de alerta para a escalada de violência que atinge ativistas e atores relevantes da arena política.

A razão imediata que levou White a cometer os crimes foi a recusa do prefeito em reconduzi-lo ao cargo de supervisor. Pressionado por setores conservadores, ele havia se arrependido da renúncia, mas Milk convenceu o prefeito a não aceitar seu retorno. Propôs a indicação de um supervisor de perfil liberal, reforçando os defensores dos direitos das chamadas “minorias” no Conselho de Supervisores, instância semelhante a nossa Câmara Municipal.

O pano de fundo era a política de Moscone que, com o apoio de Milk, vinha promovendo uma revolução para garantir os direitos civis, das mulheres, da comunidade LGBT e das minorias na prefeitura de São Francisco. Ele foi o primeiro prefeito a indicar muitas mulheres, gays, lésbicas e membros das minorias raciais para comissões e conselhos consultivos da cidade.

Pessoas como Del Martin e Kathleen Reed, respectivamente, a primeira lésbica e negra nomeadas para a Comissão sobre o Status das Mulheres, ou Charles Gain, um chefe liberal indicado para o Departamento de Polícia, que propôs superar práticas discriminatórias de recrutamento para o órgão, tornando o prefeito impopular entre os policiais da cidade.

Em 1977, Moscone enfrentou Washington ao apoiar a ocupação do Escritório do Governo Federal de São Francisco por um grupo de mais de cem pessoas com deficiência que exigiam seus direitos civis, movimento que contribuiu para a aprovação da Lei dos Americanos com Deficiência. Milk foi o principal responsável pela aprovação de uma rigorosa lei sobre direitos gays, tornando-se um ícone da comunidade LGBT.

Assim, o assassinato revestiu-se de forte viés político, relacionado com a homofobia e com a luta pelos direitos. Na noite do crime, um cortejo estimado em 40 mil pessoas moveu-se do Castro, o bairro gay de São Francisco, em direção ao City Hall, em uma emocionante vigília com velas.

Apesar da brutalidade do crime, Dan White foi condenado a uma pena branda (sete anos), pois o assassinato foi considerado homicídio involuntário. A defesa convenceu o júri de que White estava “mentalmente perturbado e em estado de depressão”. A decisão gerou indignação na comunidade gay da cidade, desencadeando fortes conflitos e enfrentamento com a polícia, em uma das noite mais violentas da história da cidade.

Na vida política e pessoal, são muitas as circunstâncias em que as pessoas são dominadas pela raiva e pelo desejo de cometer um crime, estando ou não “mentalmente perturbadas e em estado de depressão”.

Provavelmente, a defesa alegaria algo semelhante se Janot tivesse executado seu plano, assim como fez a defesa de Adélio Bispo.

O clima de ódio e intolerância em que o Brasil está atolado e a facilidade de acesso a armas, que vem sendo estimulados pelo governo, tendem a criar condições mais propícias para que esse sentimento gere tragédias. Se até mesmo um ex-chefe da PGR, cuja responsabilidade é imensa, pensa em disparar contra uma pessoa com quem tem diferenças ou raiva, o mais prudente é o poder público adotar medidas ainda mais rigorosas para o acesso a armas no país.

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