Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki
Descrição de chapéu Coronavírus

Bolsonaro é o principal, mas não o único responsável pelas 100 mil mortes

Responsabilidade também é de governadores e prefeitos, muitos dos quais envolvidos em escândalos de corrupção

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A primeira das quase vinte colunas que escrevi sobre a pandemia nesse espaço, publicada em 16 de março, tinha o título “Crimes de responsabilidade de Bolsonaro não podem ficar sem resposta”. Ficaram!

No dia anterior, o presidente, recém retornado dos EUA acompanhado por duas dezenas de auxiliares contaminados, tinha participado de uma manifestação em Brasília, por ele convocada, onde gerou aglomeração, apertou mãos, abraçou e tirou selfies com apoiadores. No dia seguinte, ocorreu em São Paulo a primeira das 100 mil mortes por Covid-19.

Nesses quase cinco turbulentos meses, ele foi o principal propagandista de fake news que desinformaram a sociedade e afetaram a eficácia da quarentena, levando a esse triste marco. Parte da população acreditou que o novo coronavírus era uma “fantasia” e que as medidas recomendadas eram inúteis.

O bolsonavirus foi reincidente, gerando várias ondas, como uma epidemia. Com a autoridade de um presidente, contrariou as recomendações sanitárias, negou a ciência, menosprezou a gravidade da doença, recomendou remédios inúteis, estimulou movimentos contra o isolamento.

O Ministério da Saúde continua sem ministro efetivo desde 14/5, período em que 87 mil brasileiros perderam a vida. O país ficou sem coordenação nacional na saúde para enfrentar a maior crise sanitária dos últimos cem anos.

A boiada passou, levando a pandemia para as áreas indígenas, invadidas por garimpeiros e madeireiros ilegais. A fiscalização ambiental foi desorganizada, levando a um aumento de 72% no desmatamento, de julho de 2018 a junho de 2020. As barbaridades cometidas não cabem nesse espaço, mas são conhecidas.

Apesar desses crimes, que muitos consideram um genocídio, Bolsonaro continua firme. Nada foi feito para removê-lo. O STF e o Congresso, ao invés de agirem para extrair o vírus que se instalou no governo federal, medida de saneamento indispensável para enfrentar a pandemia, involuntariamente o auxiliaram, impondo decisões corretas, mas que se tornaram úteis ao presidente.

Para evitar o negacionismo e a loucura que nos levaria não a cem mil mas a um milhão de mortos, o STF decidiu que estados e municípios tinham autonomia para decidir as regras da quarentena. Com isso, os governos subnacionais se tornaram responsáveis pelos acertos e erros da estratégia adotada, dando ao presidente o argumento de que ele estava de mãos atadas.

O Congresso elevou a renda emergencial de R$ 200 para R$ 600, evitando uma convulsão social e dando fôlego para o comércio e serviços. Defendida pela oposição de esquerda, a renda virou um instrumento do presidente para ampliar o apoio nos setores populares. Transformada na Renda Brasil virará um poderoso ativo eleitoral.

Até mesmo a ofensiva judicial contra seus aliados mais fanáticos o beneficiou. Acuado, decidiu se afastar (temporariamente?) dos mais radicais e buscar o apoio do centrão. A máquina federal é suficientemente forte para garantir sustentação no Congresso e no jogo do toma lá dá cá com os prefeitos.

A pandemia está longe do fim. A questionável reabertura da economia, promovida pelos estados e municípios enquanto o número de casos e de óbitos continua acelerado na maioria das unidades da federação, exige uma estratégia e coordenação governamental, a nível nacional, muito bem formulada e executada para enfrentar as crises sanitária, econômica e social. Ninguém acredita que a gestão Bolsonaro será capaz de formular e levar isso adiante.

Tal situação aumenta a responsabilidade dos governantes subnacionais. Especificamente no caso de São Paulo, acertos e erros vêm sendo cometidos. Cem mil mortes no país são chocantes, mas 25 mil óbitos no estado e 10 mil na capital (16 mil, se incluídos os óbitos suspeitos) são proporcionalmente muito maiores que a média nacional. Para comparar, a Argentina, com população próxima ao estado de São Paulo, registrou apenas 4,1 mil mortes desde o início da pandemia.

Isso mostra que se Bolsonaro é o grande responsável pelo desastre nacional, o governador Doria e o prefeito Bruno Covas têm também sua dose de responsabilidade, pois são os principais condutores da estratégia no estado que, é bom lembrar, tem a maior e melhor rede hospitalar e o segundo maior orçamento do país.

Enquanto a média nacional é de 46 óbitos por 100 mil habitantes, o estado de São Paulo tem 60 e a capital alcança 87, considerando apenas os óbitos confirmados. Se incluídos os suspeitos, o município de São Paulo chega a 135 óbitos por 100 mil, três vezes maior que a média nacional.

Erros foram cometidos desde o início da pandemia. O governador não adotou o lockdown, preferindo uma quarentena relaxada, que manteve um isolamento muito parcial, que garantiu os leitos de UTI, mas não a queda dos casos. A Argentina, mesmo com índices muitíssimos mais baixos que os de São Paulo, manteve um isolamento muito mais radical. No Chile, as pessoas apenas podem sair na rua seis horas por semana, com agenda prévia pela internet.

Não foram realizados testes em massa, o que permitiria isolar os contaminados assintomáticos em hotéis de quarentena para evitar a contaminação de familiares e colegas de trabalho. Famílias inteiras foram infectadas.

A redução do transporte coletivo, especialmente a frota de ônibus, manteve a superlotação dos veículos, que se tornaram vetores de transmissão. Pesquisa realizada pela Unifesp, mostrou que os distritos onde há maior utilização da frota de ônibus apresentaram os mais altos números absolutos de óbitos por Covid-19.

Nada foi feito para melhorar as condições dos que habitam em moradias precárias, de modo que pudessem seguir a recomendação de “ficar em casa”. Os distritos centrais, com maior concentração de cortiços, apresentaram os mais altos índices relativos de óbitos. Nada foi feito para remanejar esses moradores e desadensar suas moradias.

Nenhuma ação significativa foi implementada para os moradores em situação de rua, cujo número claramente se elevou devido aos despejo de inquilinos de cortiços, que ficaram sem renda para o aluguel. A prefeitura não suspendeu ações de reintegração de posse em terrenos municipais.

Não se implementou um programa de inclusão digital para garantir acesso livre à internet para a população de baixa renda, em particular os estudantes da rede pública que ficaram prejudicados.

A decisão de flexibilização do isolamento não foi acompanhada de uma forte campanha de prevenção. É só circular pela cidade para verificar a grande quantidade de pessoas sem máscaras, aglomeradas sem necessidade e compartilhando objetos sem nenhum cuidado. Quase todo o comércio e serviços voltaram às atividades e se debate a retorno das escolas malgrado os altos números de casos e mortes.

A situação de São Paulo não difere da maioria dos demais estados. Nesse contexto, as perspectivas de redução significativa no número de casos e mortes são remotas. Tudo indica que caminharemos para os 200 mil óbitos antes do final do ano.

Se Bolsonaro é o principal responsável, não podemos isentar governadores e prefeitos, muitos dos quais envolvidos em escândalos de corrupção na compra de equipamentos da saúde, como o Witzel no Rio de Janeiro, da responsabilidade pelos 100 mil mortos.

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