Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki

Por que o atropelador da ciclista Marina Harkot precisa ser condenado com rigor

Caso, exemplar da morosidade da Justiça, não pode também virar exemplo de impunidade

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Nos sete primeiros meses de 2021, o número de ciclistas que morreram nas ruas de São Paulo aumentou 52% em relação a 2020. Segundo a Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), 13.718 ciclistas foram a óbito no trânsito brasileiro na década passada. Destes, 60% foram por atropelamento, como ocorreu com a cicloativista Marina Harkot.

É por isso que o julgamento do microempresário José Maria da Costa Júnior, que atropelou Marina na avenida Sumaré, na zona oeste de São Paulo, não pode ser visto como um caso isolado.

Não se trata da condenação de um criminoso qualquer, mas um caso exemplar onde não pode prevalecer a impunidade de motoristas que desprezam a vida de pedestres e ciclistas, como tem ocorrido com frequência.

José Maria, 34, estava embriagado e fugiu sem prestar socorro, deixando a ciclista estatelada no asfalto, como se não tivesse nada a ver com isso. Foi filmado a 93 km por hora logo após o acidente e, em seguida, aparece sorrindo com a estudante Isabela Serafim, que o acompanhava, em cena captada pela câmera do elevador do seu edifício.

Identificado, se apresentou à polícia dois dias depois. Em entrevista à Rede Globo, declarou que "não tinha noção do que tinha acontecido, de que alguém pudesse estar machucado, se era um roubo. [...] Tinha mais gente lá, que tivesse até mais condições de socorrer". É inacreditável tamanha desfaçatez.

José Maria afirmou à polícia que não havia bebido, mas sua versão é conflitante com a de Isabela e do outro ocupante do carro, o auxiliar do cartório Guilherme Dias da Mota.

Isabela disse que o atropelador havia bebido um uísque com energético, versão confirmada por Guilherme, que disse ainda que ele já chegou alcoolizado ao bar onde se encontraram. Ambos confirmaram que o carro transitava em alta velocidade.

Felizmente, a Justiça acolheu, preliminarmente, a denúncia do Ministério Público contra ele por homicídio qualificado por dolo eventual, ou seja, quando se assume o risco de matar, além dos crimes de fuga do local do acidente e a direção "com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool".

Mas a morosidade e os meandros da Justiça e, sobretudo, os precedentes de impunidade em casos semelhantes mostram que é necessário ficar alerta.

O homicídio de Marina ocorreu há mais de um ano, período em que José Maria responde ao processo em liberdade, embora proibido de dirigir e de ir a bares. Quem está fiscalizando isso?

Apenas na próxima quarta-feira (24), ele e as testemunhas serão ouvidos pela juíza Marcela Raia de Sant'Anna, na primeira audiência de instrução presencial sobre o caso. Isso se ele não arranjar um pretexto para não aparecer.

Depois da audiência, a juíza decidirá se há indícios suficientes de crime para que o caso seja considerado homicídio doloso e seja levado a júri popular. Nessa hipótese, sete jurados decidirão, no Tribunal do Júri, a responsabilidade e a pena de José Maria. No caso de homicídio, a sentença pode chegar a até 30 anos de prisão.

Espera-se que o homicídio de Marina não tenha o mesmo destino que teve o atropelamento do administrador Vitor Gurman, um caso semelhante e exemplo de morosidade e impunidade.

Em 2011, Gurman, 24, caminhava por uma calçada da Vila Madalena, quando foi atropelado por uma Land Rover, dirigido pela nutricionista Gabriela Guerrero Pereira que, depois de atingir o rapaz, derrubou um poste de iluminação e capotou. Submetido a uma cirurgia, ele foi a óbito.

Embora o Ministério Púlbico tenha concluído que a nutricionista dirigia sob efeito de álcool, a uma velocidade entre 62 km/h e 92 km/h, quando o máximo permitido na via era de 30 km/h, o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu, em 2017, que Gabriela não iria a júri popular pois a conduta dela foi reinterpretada como homicídio culposo (quando não há intenção de matar).

Em março de 2021, dez anos depois do homicídio, a Justiça de São Paulo condenou a nutricionista a três anos de detenção, em regime aberto, pena substituída por prestação de serviços à comunidade e multa de 20 salários mínimos (R$ 22 mil). Como o caso não foi a júri popular, a decisão foi tomada pela juíza Valéria Longobardi.

Espera-se que a punição para o assassinato de Marina não leve o mesmo tempo e não tenha o mesmo destino do caso de Gurman. É por isso que seus familiares e amigos farão um protesto no dia da audiência, chamando a atenção para o caso.

Com 28 anos, Marina defendia o direito à mobilidade ativa, olhando em especial para a questão de gênero e a segurança das ciclistas. Enquanto estudava "as bicicletas e as mulheres", tema de seu mestrado, lutava por políticas públicas que alterassem a lógica e a cultura de mobilidade que privilegia o automóvel que, simbolicamente, se tornou seu algoz.

José Maria é um triste exemplo de um comportamento muito difundido entre os motoristas, em um modelo de cidade centrada no predomínio do automóvel e em uma cultura machista onde a bebida e a velocidade são expressões de poder.

Uma cultura que não aceita que "o maior deve sempre cuidar do menor", ou seja, que o carro deve respeitar o ciclista e o pedestre, como estabelece o Código de Trânsito Brasileiro. E que se opõe a alterar o modelo de mobilidade, para garantir mais espaço das ruas e avenida para a mobilidade ativa e o transporte coletivo.

Em São Paulo, após a gestão Haddad priorizar a segurança no trânsito, com a implantação de uma rede cicloviária e a redução da velocidade, o lema "Acelera SP", adotado pela gestão Doria em 2017, deu uma sinalização negativa para a sociedade, e a implantação de novas ciclovias sofreu forte redução (de 400 km para apenas 120 km, em quatro anos).

Se o julgamento do assassinato de Marina ocorrer em um Tribunal de Júri, como se espera, teremos uma boa oportunidade para, além de condenar um assassino, dar visibilidade à necessidade de colocar a segurança do trânsito como prioridade na política de mobilidade.

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