Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Nabil Bonduki
Descrição de chapéu Mobilidade

Tarcísio, o engenheiro que não conhece Prestes Maia e Saturnino de Brito

Ex-ministro da Infraestrutura, que quer ser governador, desconhece os projetos e as obras dos dois maiores engenheiros urbanos do Brasil do século 20

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Entre os inúmeros temas tratados nas entrevistas que o Podcast Flow fez com os candidatos Tarcísio de Freitas e Fernando Haddad, uma pergunta foi particularmente relevante para auferir o que os candidatos conhecem sobre infraestrutura e desenvolvimento urbano e sobre o que propõem para as cidades, onde vive 93% dos paulistas.

O apresentador Igor Coelho fez a mesma pergunta para os dois: "Alguma proposta para os rios e córregos da cidade? Já viu sobre o Plano de Avenida na época do Prestes Maia e Saturnino de Brito?"

A resposta de Tarcísio foi curta e grossa: "Não faço a menor ideia. Vou pesquisar."

Tarcísio de Freitas é entrevistado pelo podcast Flow
Tarcísio de Freitas em entrevista concedida para o podcast Flow - Reprodução/Youtube

Mais do que mil argumentos dos adversários, a resposta do candidato de Bolsonaro é a prova mais inconteste de que ele é uma fraude eleitoral, um sujeito despreparado que se vende como engenheiro competente e que, enganando parte do eleitorado paulista, pode ser eleito governador do estado.

É imperdoável um ex-ministro da Infraestrutura desconhecer os planos e as obras dos dois mais importantes engenheiros brasileiros do século 20, que deixaram fortes marcas na infraestrutura das principais cidades paulistas e brasileiras: Francisco Prestes Maia e Francisco Saturnino de Brito.

Prestes Maia, engenheiro-arquiteto formado na Escola Politécnica, elaborou planos e projetos urbanos para as principais cidades paulistas: São Paulo, Campinas e Santos. Entre eles, o mais conhecido e impactante foi o Plano de Avenidas.

Embora Tarcísio não tenha a menor ideia do que seja, esse plano orientou a estrutura viária e urbana de São Paulo por, pelo menos, 80 anos. Primeiro plano geral da cidade, propunha estruturá-la através da criação de anéis viários e vias radiais e perimetrais.

Prestes Maia administrou a capital por onze anos. Indicado para ser prefeito de São Paulo (1938-1945) por Getúlio Vargas, Maia iniciou a implementação de seu plano, com a abertura do Anel de Irradiação no entorno do centro histórico, implantando as avenidas Senador Queirós, Ipiranga, São Luiz e Mercúrio e a construção dos viadutos 9 de Julho, Jacareí e Maria Paula.

Maia também abriu avenidas radiais, como a Radial Leste, a 9 de Julho e a Tiradentes, que reforçaram a estrutura radio-concêntrica da cidade. Retornou à prefeitura em 1961 através de eleições diretas e iniciou a implantação das marginais do Tiete e da Avenida 23 de Maio, entre outras.

Embora não previsto por Prestes Maia, o Rodoanel, que o próximo governador deverá concluir, segue a mesma lógica do Plano de Avenidas, reforçando um modelo urbano que o atual Plano Diretor de São Paulo busca reverter.

Como bem respondeu Fernando Haddad à mesma pergunta, Prestes Maia e seu Plano de Avenida viabilizaram a mobilidade motorizada em São Paulo, priorizando a circulação de automóveis. Foram deixados em segundo plano tanto o transporte coletivo como o meio ambiente e a drenagem urbana, pois muitas das avenidas foram implantadas em fundos de vale, tamponando rios e córregos e ignorando a criação de faixas de proteção verde.

Por essa razão, Haddad disse preferir a concepção de Saturnino de Brito, de quem se declarou fã, à visão rodoviarista de Prestes Maia, de forma coerente com seu plano de governo, que prioriza o transporte coletivo e um desenvolvimento urbano orientado pela sustentabilidade e pela preocupação com a transição ecológica e com as soluções baseadas na natureza.

O ex-prefeito considera Brito um visionário, pois há mais de um século anteviu a necessidade de considerar o meio físico e a circulação das águas como elementos estruturadores do urbanismo, aspectos que, em tempos de emergência climática, adquirem cada vez maior relevância.

Embora na sua época inexistisse a qualificação de "ambientalista", Saturnino pode ser considerado precursor de uma concepção que coloca o meio ambiente como uma dimensão estruturadora das cidades, que deve ser observada com a mesma importância que a mobilidade e a estética urbana. Seu famoso livro, publicado na França, "Le Tracé Sanitaire des Villes" ("O traçado sanitário das cidades") explicita essa visão.

Saturnino de Brito é o mais importante engenheiro sanitário do Brasil, reconhecido internacionalmente. Ele elaborou planos de saneamento para cerca de 35 cidades brasileiras, trabalhando de norte a sul do país e foi eleito, por unanimidade, pela Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental, o Patrono da Engenharia Sanitária Brasileira.

Seu plano mais conhecido, citado por Haddad na entrevista, foi o Plano de Saneamento de Santos (1904), que controlou a febre amarela que infestava a cidade-porto. Brito associou o saneamento com a expansão urbana em direção às praias, considerando a estruturação do sistema viário, a drenagem e a arborização urbana.

Desse plano resultou a abertura dos canais para a drenagem das águas pluviais, que funciona com o fluxo das marés e um sistema separador para coleta do esgoto, que era levado para fora da Ilha de São Vicente, onde fica Santos, através de uma ponte pênsil construída especialmente com essa finalidade. Até hoje as marcas desse plano estão fortemente visíveis na cidade.

Que Tarcísio desconheça planos e traços tão característicos das cidades paulistas é compreensível, embora não justificável, pois nunca viveu no estado. Mas a obra de Saturnino está espalhada por todo o país. O espaço é pequeno para detalhar seus inúmeros planos de saneamento em cidades como Recife, Natal, Pelotas e Rio Grande, entre outras.

O que se falaria de um médico que desconhece Osvaldo Cruz, Emilio Ribas e Adib Jatene? De um arquiteto que não tem a menor ideia de quem foi Lúcio Costa e Oscar Niemeyer? De um advogado que não sabe quem foi Rui Barbosa, Pontes de Miranda e Luís Gama? De um educador que nunca ouviu falar de Anísio Teixeira e Paulo Freire?

Pois é! Tarcísio, ao confessar que "não tem a menor ideia" de quem foi Prestes Maia e Saturnino de Brito, mostrou que tem apenas o diploma e a fachada de um engenheiro que diz entender de infraestrutura mas que desconhece a história da infraestrutura do país e, especialmente, do estado que pretende governar.

Isso se reflete em seu programa de governo na área de desenvolvimento urbano e meio ambiente, que é genérico, sem detalhar nenhuma proposta e sem explicitar quais são suas prioridades. Eleger um governador com esse perfil é assinar um cheque em branco.

Como se vê, existem muitos outros motivos, além de evitar que o bolsonarismo e a extrema direita domine o estado de São Paulo, para não se votar em Tarcísio de Freitas.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.