Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor
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Silvio, Antonia, Proust e Exu

Ela tinha um quarto que parecia uma biblioteca de tantos livros que reunia

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Milly Lacombe

Silvio chegou à portaria do edifício e disse que iria ao 64. "Vim dar aula de computação para dona Antonia." A expressão do porteiro irritou Silvio. Aula para uma velha? De computador? Um negro franzino que nem 15 anos tem? Silvio imaginou que o porteiro estava com essas ideias. O porteiro interfonou. Dona Antonia mandou que o rapaz subisse.

Silvio havia sido indicado por uma amiga de Antonia para que ela, deficiente visual, pudesse aprender a baixar livros eletrônicos. O garoto era filho da empregada doméstica dessa amiga e poderia auxiliar Antonia quando saísse da escola. Antonia não ia mais à rua e contava com a ajuda de um grupo de colegas da Igreja que se revezavam levando comida. Silvio nunca tinha conhecido alguém que não enxergasse e, sem saber como cumprimentar aquela senhora à sua frente, resolveu que a melhor coisa a fazer seria abraçá-la. Antonia estranhou, mas abraçou o menino de volta. Ela era uma mulher alta, Silvio ainda não tinha alcançado seu verdadeiro tamanho, então ela se curvou para poder acolhê-lo.

Ela tinha um quarto que parecia uma biblioteca de tantos livros que reunia - branislav - stock.adobe.com

Foram para um quarto que parecia uma biblioteca de tantos livros que reunia. A ideia era a de que Silvio ajudaria Antonia a baixar textos eletrônicos para que ela pudesse escutar. Antonia era arquiteta aposentada, havia perdido quase completamente a visão aos 70 anos, não tinha filhos e passava o dia com a TV ligada nos canais de notícia. "Está me fazendo mal escutar essas coisas, preciso voltar a ler", ela disse a Silvio. Ele então perguntou se ela gostaria que ele lesse aqueles livros para ela. Disse que poderia baixar alguns, mostrar a ela qual teclas clicar para escutar, mas que poderia também ler para ela. Antonia achou a ideia boa e Silvio quis saber o que ela gostaria de ler naquela tarde. Ela pediu que ele achasse "Cartas a um Jovem Poeta", de Rilke. Os dois ficaram o resto do dia lendo no sofá da sala. As visitas semanais passaram a ser bissemanais e, depois, diárias. Silvio saía da aula e ia direto almoçar com Antonia. Nos finais de semana, chegava mais cedo. Aos domingos, viam jogos do Corinthians. Antonia não gostava de futebol, mas adorava escutar as reações de Silvio a cada lance. Um dia, depois de o Corinthians virar o placar no último minuto, Antonia disse, "que sorte!" e ele respondeu: "Nunca foi sorte, dona Antonia, sempre foi Exu". Antonia achou aquilo estranho e pediu que ele deixasse Exu fora daquela casa. Silvio explicou a ela o que tinha aprendido com sua mãe sobre Exu, tentando mostrar que ele não era o diabo como ela imaginava. "Exu matou um pássaro ontem com a pedra que jogou hoje", ele disse a ela antes de contar o que era um Oriki e o que aquele especificamente queria dizer. Antonia foi arrebatada pela explicação e pediu que Silvio fosse na estante pegar o primeiro volume de "Em Busca do Tempo Perdido", de Proust. "Se você acredita que o tempo não é linear, se acha que podemos modificar o passado, esse é o nosso livro".

Durante meses, leram Proust. Depois, releram. Os anos se passaram, Silvio entrou na Faculdade de Direito e depois foi fazer mestrado em filosofia. Nunca deixou de ir à casa de Antonia até o dia em que ela morreu, aos 91 anos. No testamento, destinou seus livros a ele com um pedido em bilhete. "Não deixe de fazer seu doutorado. E, se pode aceitar uma sugestão de pesquisa, eu pediria que achasse Exu em Proust. Na hora que fizer isso, o tempo vai se comprimir num presente de infinitas camadas e nossos mundos vão, outra vez, se encontrar. Voa, meu filho".

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