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Julio Wiziack é editor do Painel S.A. e está na Folha desde 2007, cobrindo bastidores de economia e negócios. Foi repórter especial e venceu os prêmios Esso e Embratel, em 2012

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Descrição de chapéu mudança climática chuva

Brasil precisa ver tragédia da chuva como momento de reflexão moral e ética, diz Gerando Falcões

Para Edu Lyra, catástrofe é a gota d'água para reduzir desigualdade e salvar o planeta de crise climática

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São Paulo

O fundador da Gerando Falcões, Edu Lyra, —que poucas horas depois da catástrofe no litoral paulista divulgou uma campanha de doação que já chegou a R$ 9 milhões, sendo R$ 1 milhão do caixa da ONG— afirma que a sociedade precisa se unir em um pacto e criar uma estratégia com metas para impedir a repetição da tragédia.

"O Brasil tem que virar a página de omissão e desprezo aos pobres", afirma.

Edu Lyra é um homem negro. Ele usa óculos e camiseta azul e está sentado em uma cadeira em um auditório.
Retrato do fundador e CEO da ONG Gerando Falcões, Edu Lyra, no auditório da Folha - Bruno Santos - 21.jan.21/Folhapress

Quando o sr. decidiu ir para o local da tragédia e reunir ajuda? Estava em casa com minha família [no domingo de manhã] quando vi a primeira notícia. Me acendeu o radar porque é uma região de muito risco. Desde o começo da época de chuvas, a Gerando Falcões estava atenta para captar possíveis desastres. Entramos em contato com as comunidades e liguei para a dona Maria Antonia Civita, fundadora do Verdescola [ONG que atua na região], para entender o diagnóstico.

Nesse momento, entendi que tinha algo sério que precisava de uma ação emergencial e coloquei no ar a campanha. Comuniquei a sociedade. Quando cheguei na Vila Sahy, fui até o alto do morro e vi um cenário de destruição apocalíptico. Decidi ficar aqui. Estou com a comunidade local, tentando organizar a ajuda e vivenciando isso.

O sr. tem falado da urgência de repensar as cidades. Qual é o próximo passo? Isso deve ser encarado como a gota d’água. Milhões de brasileiros vivem em favelas em beira de encostas, lugares de altíssimo risco. O Brasil é um país rico. Precisamos adequar as cidades para esses eventos climáticos. Os ambientalistas mais experientes dizem que esse é o novo normal. As cidades não estão prontas. E os mais afetados serão os mais pobres, que têm como única opção morar nos lugares inadequados.

O país precisa enxergar essa catástrofe como um momento de profunda reflexão moral, ética e de futuro. Precisa criar um pacto social envolvendo estado, governos, terceiro setor, comunidades e iniciativa privada. É preciso se levantar contra isso de forma estratégica, com um plano de 10 a 20 anos à frente, mas com metas mensais e trimestrais para criar uma via alternativa, se não, o Brasil vai, ano após ano, enterrar milhares e, talvez, milhões de pobres. A omissão pode ser tão destrutiva quanto a intenção de matar.

Os governantes têm diante de si a oportunidade de reescrever a história. Isso significa pedir perdão aos mais pobres. Ou a nossa geração vai carregar essa dívida.

O sr. esteve com a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, e com o presidente Lula? Ela veio até a Vila Sahy. Eu estava aqui com a fundadora do Verdescola. O governador veio com a ministra. Ela foi atenciosa, dialogou com a população, assim como o governador. Ouviu e afirmou que está empenhada em buscar um caminho. Disse que, infelizmente, esse é o primeiro de uma série de eventos climáticos.

A sociedade vinha sendo avisada há décadas e não tomou as ações que deveria. Colhemos as consequências. Ele [o presidente Lula] esteve em São Sebastião. Também ouviu o diagnóstico local, os dramas, os estragos, e construiu um grupo de trabalho com o poder público local para atuar na reconstrução.

Quanto a Gerando Falcões já arrecadou? Muitas empresas estão aderindo? Na campanha Tamo Junto já foram R$ 9 milhões. No início, teve muito Pix de pessoa física. Depois do Carnaval, as empresas entraram de forma significativa. Desde iFood, Ambev, Bradesco, Localiza até associações empresariais. E tem muitas outras ONGs fazendo doações.

No campo, temos nossos agentes sociais, carros, também da Localiza, para fazer o escoamento e caçar gente que esteja com fome para dar dignidade no atendimento.

O que viu ao longo dos dias?Nunca vi coisa assim na minha vida. É como zona de guerra. Você é levado ao extremo da emoção humana sucessivas vezes durante o dia. Desaba chorando. Uma hora um chora e você consola, depois o outro te acolhe.

Vão chegando corpos. As famílias vendo. Quando tem o reconhecimento de um corpo é um desespero de mãe, de amigo. Vi gente infartando na minha frente. O espaço social é levado ao ápice do estresse humano. Todos estão trabalhando nesse nível de estresse. Alguns medicados, com calmante, gente com perna quebrada. No primeiro dia, não tinha infraestrutura, gaze, equipamento. Sala de aula virou necrotério. Cachorro no meio. Assustador.

Essa doação das empresas foi impulsionada pela experiência vista na pandemia? A sociedade criou melhores instrumentos de diálogo e mobilização. A ponta mobiliza melhor com o PIB hoje. Esse é um problema que não se resolve em três dias. Vai exigir colaboração entre todos os setores para reconstruir casas, tirar pessoas da área de risco.

O Brasil precisa encarar esse momento para remodelar a forma como lida com os mais pobres. Não é justo uma criança nascida em uma favela ser sentenciada a morrer soterrada. Temos que tirar a favela da lama. A sociedade civil deveria se unir em um pacto. Não podemos aceitar que mais um evento como esse enterre e humilhe pessoas.

O Brasil tem que virar a página de omissão e desprezo aos pobres. É o momento de reduzir desigualdades e salvar o planeta de uma catástrofe climática.


Raio-X

Fundador e CEO da Gerando Falcões, ONG que viabiliza projetos de impacto social em periferias, já foi selecionado pelo Fórum Econômico Mundial como um dos 15 jovens que podem mudar o mundo. Escreveu o livro "Jovens Falcões", foi um dos roteiristas do filme "Na Quebrada" e deu palestras em universidades como Harvard.

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