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Descrição de chapéu marco temporal indígenas

A crise é de valores e não apenas climática

Recentes alterações em leis federais fazem Brasil perder mais uma vez a oportunidade de ser grande de verdade

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Defender a conservação da biodiversidade é estar sempre em alerta. As pressões incessantes ainda nos surpreendem, já que nossos governantes insistem em tratar os recursos naturais brasileiros como um ativo a ser explorado indefinidamente. Reflexo disso foi a aprovação pelo Congresso da Medida Provisória 1154/23 entre outras recentes alterações na legislação federal.

A medida é considerada vitória para muitos do governo, mas grande derrota para as causas socioambientais, que serviram de bandeira de eleição do novo presidente.

Lula (PT) se elegeu com promessas de mudança de olhar, contrapondo o que vivemos nos últimos anos. Foi um sopro de esperança para quem atua pela conservação da natureza. Internacionalmente, o Brasil voltou a ser valorizado pelo posicionamento em busca de respeito às culturas tradicionais, proteção das florestas, matriz energética mais sustentável e equilíbrio climático.

A MP aprovada, entretanto, mudou o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) e, de carona, minou as forças do Ministério dos Povos Originários (MPI).

O Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH) e a Agência Nacional de Águas (ANA) e Saneamento Básico, antes sob a responsabilidade do MMA, agora são atribuições do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional (MDR).

A mudança é arriscada porque fragmenta a integridade da gestão das águas, que depende de matas ciliares e florestas bem conservadas. Água é atribuição ambiental e não desenvolvimentista.

Outra alteração preocupante se refere ao Cadastro Ambiental Rural (CAR), mecanismo de monitoramento de nossas florestas.

O CAR foi criado para integrar as informações ambientais das propriedades e posses rurais, formando uma base de dados que permite controle do desmatamento. Agora o mecanismo estará sob a responsabilidade do Ministério de Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, espaço sem perfil para avaliar e conduzir o necessário para proteção dos biomas.

Em ambientes fragmentados como a Mata Atlântica, o CAR, mesmo não caminhando na velocidade desejada, cumpria um papel importante. É com base neste sistema, por exemplo, que o IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas, ONG ambientalista, elabora planejamentos de adequação ambiental das áreas rurais nas propriedades do Sistema Cantareira, para proteger a água, ou no Pontal do Paranapanema, onde atua há mais de 30 anos.

Como se não bastasse o desmantelamento do MMA, o Congresso avançou com a votação da MP1150/22, que passa a permitir o desmatamento de vegetação primária e secundária em estágio avançado de regeneração e praticamente acaba com a Lei da Mata Atlântica.

A medida foi vetada pelo presidente Lula, mas voltará ao Congresso, que decidirá ou não pelo veto. Isso representa um risco extremo para um dos biomas mais devastados do Brasil, que concentra 80% do PIB nacional e onde vivem 72% dos brasileiros e muitas espécies ameaçadas de extinção, como o mico-leão-preto, e outras ainda nem estudadas pela ciência.

Amplamente defendido pela bancada ruralista e do agronegócio, essa "desidratação" dos ministérios não vai acontecer apenas metaforicamente, mas acarretará danos reais na falta de serviços que a natureza proporciona, inclusive água, tão necessária ao setor produtivo.

O risco de passarmos por cima de decisões técnicas que apontam os limites dos recursos naturais também nos fará perder respeito internacional e negócios.

Mais do que crise ambiental e climática, vivemos uma crise de humanidade, de valores, que confirmam o que a ministra Marina Silva defende quando afirma que há falta de pensamento estratégico no Brasil em relação às nossas riquezas naturais.

As alterações recentes também afetam muito os povos indígenas. A atribuição de demarcação de terras foi retirada do MPI. A aprovação do Projeto de Lei 490, que trata, dentre outras questões, do marco temporal da demarcação das terras indígenas -agora no Senado como PL2903- é prova de que não aprendemos com o passado, e que a norma continua a ser desrespeito aos povos originários.

O projeto abre caminho para construção de rodovias, hidrelétricas e empreendimentos em terras indígenas sem consulta prévia às populações, além de autorizar procedimentos demarcatórios por qualquer pessoa. Perdemos mais uma chance de sermos grandes como a natureza do Brasil e os povos da floresta merecem.

É um absurdo um país que quer se posicionar como liderança na área ambiental queime sua reputação em tão pouco tempo.

A grande mobilização das populações indígenas contra as medidas descabidas que estão em curso nos inspira e nos fortalece como ambientalistas.

Como disse a deputada federal Celia Xakriaba (PSOL), uma das poucas representantes indígenas no Congresso, "derrotado é quem está de braços cruzados e quem não luta, por isso não nos sentimos derrotados".

Vamos juntos, como sempre fizemos. E em alerta, porque não existe descanso na defesa das causas socioambientais.

Suzana Pádua

Doutora em desenvolvimento sustentável pela UnB, é presidente do IPÊ (Instituto de Pesquisas Ecológicas) e vencedora do Prêmio Empreendedor Social 2009

Paula Piccin

Jornalista e coordenadora de comunicação do IPÊ (Instituto de Pesquisas Ecológicas)

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