Paula Cesarino Costa

Jornalista, foi secretária de Redação e diretora da Sucursal do Rio. Foi ombudsman da Folha de abril de 2016 até maio de 2019.

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Paula Cesarino Costa

Tensão com o poder

Em seminário interno, Folha discute jornalismo sob governo Bolsonaro

Ilustração Carvall

Carvall

O que poderá existir de comum entre o futuro governo Jair Bolsonaro e a gestão de Fernando Collor de Mello (1990-1992)? Quais são as semelhanças e as diferenças entre o eleito brasileiro e o atual presidente americano Donald Trump?

Tendo como pano de fundo essas duas questões, a Folha realizou nesta semana dois encontros para debater a cobertura do governo Bolsonaro.

É uma tradição da Folha, desde os anos 1980, promover seminários internos tanto para discutir as prioridades e os desafios do ano quanto para debater temas mais amplos e teóricos do jornalismo.

O ponto de partida foi a exibição do série documental “The Fourth Estate (“O quarto poder”, 2018)”, da premiada diretora Liz Garbus, que acompanhou a rotina da redação do jornal americano The New York Times nos primeiros 16 meses do governo Trump.

Com raro acesso aos jornalistas e debates internos do NYT, a série de mais de quatro horas é um relato competente e diligente da construção da notícia, apesar de nem sempre conseguir ser profunda, questionadora e reveladora, como se apresenta. 

A exibição, disse o editor-executivo Sérgio Dávila, deveu-se às semelhanças possíveis no modo de Trump e de Bolsonaro se relacionarem com a imprensa, além de coincidências do quadro político: ascensão ao poder de uma força política nova, com a qual os jornalistas estão pouco familiarizados, e a atitude hostil do núcleo duro dessa força ao jornalismo profissional. 

A citação ao governo Collor é uma referência a um período conflituoso, turbulento, mas jornalisticamente rico para a Folha. Desde a campanha presidencial de 1989, foi o jornal que mais criticamente cobriu Collor, revelando, por exemplo, suas relações com usineiros, desmistificando a aura do caçador de marajás e esmiuçando contas e contratos. A reação do governo Collor foi violenta, com a Polícia Federal tendo invadido o prédio da Folha e o governo movendo diversos processos contra o jornal e seus jornalistas.

O presidente eleito também indica o caminho do confronto. Após reportagens incômodas, como a existência de funcionária fantasma em seu gabinete de deputado e o uso de ferramentas ilegais na campanha eleitoral (por exemplo, disparo em massa de mensagens de aplicativos), Bolsonaro atacou a Folha em diversas ocasiões, pregou sua extinção e ameaçou publicamente fazer retaliações. Momentos como esses exigem tenacidade e temperança por parte da Redação.

No seminário, Dávila deixou clara a linha geral que o jornal persegue: “A Folha não faz nem fará oposição ao governo Bolsonaro, porque não faz oposição a governo algum. É apartidária. Noticiaremos o que for positivo e negativo no novo governo com igual destaque. Seremos críticos, mas também pluralistas, seremos investigativos, mas também propositivos”.

Uma característica de Bolsonaro e da equipe que formou é a presença de neófitos na política, na administração pública e/ou na mídia. Sua eleição foi conquistada fora dos meios tradicionais: sem marqueteiro ou publicitários, quase nenhum tempo na TV, comunicação direta com os eleitores via redes sociais.

Na relação com os jornalistas, em geral, os bolsonaristas abrem mão de mediadores, como assessores de imprensa ou porta-vozes profissionais.

Apesar da tentação de mostrar semelhanças entre o período Collor e o de Bolsonaro, minha impressão é que a sociedade mudou tanto em quase 30 anos que as diferenças se tornam tão marcantes que impedem comparação adequada. O mundo da comunicação eletrônica e da informação em tempo real e instantânea torna pré-histórico um período em que a rede mundial era restrita e os celulares eram raros.

A vitória de Bolsonaro, é fato, afasta do poder uma elite paulista que habitou o Planalto por mais de duas décadas. O jornal terá de descobrir como ir além da intelectualidade que orbita a Folha, ligada tanto ao PSDB quanto ao PT. Será necessário descobrir e compreender como pensam e como agem os novos inquilinos do Planalto e quem os inspira.

Jornalistas deverão renovar fontes, mudar formas de apuração, tomar cuidado com ideias preconceituosas. Como exemplo, posso mencionar a relação com dois grupos que, distantes do jornal e dos jornalistas, terão força no futuro governo: evangélicos e militares.

Em suma, a Folha deve reforçar seus parâmetros para manter-se firme na prática do jornalismo crítico, plural e apartidário. Cabe encerrar com as palavras de Otavio Frias Filho (1957-2018), diretor de Redação da Folha desde 1984, em carta aberta a Collor que marcou o ápice da tensão com o poder em 1991: “Governos são tragados pelo turbilhão do tempo, mas o jornal, desde que cultive seu compromisso com o direito dos leitores à verdade, continuará a exercer seu papel de oxigenar a vida pública.”

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