Paul Krugman

Prêmio Nobel de Economia, colunista do jornal The New York Times.

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Paul Krugman

Por que os Estados Unidos odeiam suas crianças

Crianças que recebem nutrição adequada e cuidados de saúde ao crescer se tornam adultos mais saudáveis e mais produtivos

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Um dia desses, um correspondente me fez uma boa pergunta: sobre que questão importante não estamos falando? Minha resposta, depois de alguma reflexão, é a situação das crianças dos Estados Unidos.
Não é inteiramente justo afirmar que estamos ignorando as dificuldades de nossas crianças.

Elizabeth Warren, caracteristicamente, apresentou um plano abrangente, e plenamente custeado, para o atendimento completo às crianças. Bernie Sanders, também caracteristicamente, diz que favorece a ideia, mas não apresentou detalhes. E, na medida em que sei, os demais pré-candidatos democratas também apoiam fazer mais pelas crianças.

Mas a política com relação às crianças atraiu muito menos atenção da mídia do que o debate sobre o “Medicare para todos”, que não se tornará realidade no futuro previsível; a chamada “briga” entre Warren e Sanders também atraiu muito mais atenção.

E meu palpite é que mesmo os eleitores bem informados fazem pouca ideia de o quanto as políticas públicas dos Estados Unidos com relação às crianças diferem das normas mundiais; em comparação com de todos os demais países avançados, as políticas dos Estados Unidos parecem saídas de um livro de Dickens.

Elizabeth Warren e Bernie Sanders durante debate em Iowa, Estados Unidos - 14.jan.2020/Reuters

Cabe citar alguns números, aqui.

Todo país avançado oferece alguma forma de licença-maternidade remunerada, tipicamente de três ou quatro meses —todo país exceto os Estados Unidos, que não oferecem licença-maternidade alguma.

A maioria dos países avançados dedica verbas substanciais aos benefícios para famílias com crianças; na Europa, esses benefícios são de em média 2% a 3% do PIB (Produto Interno Bruto). Nos Estados Unidos, a proporção é de 0,6%.

Mesmo nos casos em que os Estados Unidos ajudam as crianças, a qualidade dessa ajuda tende a ser ruim. Houve muitas comparações entre os almoços escolares na França e nos Estados Unidos. As crianças francesas são ensinadas a comer refeições saudáveis; já as crianças americanas são tratadas como repositórios para produtos agrícolas excedentes.

O que impressiona especialmente é o contraste entre a maneira pela qual tratamos nossas crianças e a maneira pela qual tratamos os idosos. A previdência social não é assim tão generosa —há bons argumentos em favor de expandi-la—, mas pode ser comparada sem muita desvantagem aos sistemas de aposentadoria de outros países. O programa federal de saúde Medicare na verdade realiza gastos consideráveis, se comparado aos sistemas de pagador único vigentes em outros países.

Assim, a recusa americana quanto a ajudar as crianças não é parte de uma oposição generalizada a programas do governo; reservamos um tratamento especialmente duro para as nossas crianças. Por quê?
A resposta, eu sugeriria, vai além do fato de que crianças não votam, enquanto os idosos podem fazê-lo e fazem. Também vem acontecendo uma interação venenosa entre antagonismo racial e análise social inexata.

Hoje em dia, o apoio político a programas que ajudam crianças é certamente prejudicado pelo fato de que menos de metade da população com idade inferior a 15 anos é composta de brancos não hispânicos. Mas mesmo antes que a imigração transformasse a paisagem étnica dos Estados Unidos, havia uma percepção generalizada de que programas como o de assistência a famílias com crianças dependentes basicamente ajudavam Aquelas Pessoas —você sabe de quem estou falando, os vagabundos que vivem de assistência do governo, as mães desempregadas que dirigem Cadillacs.

Essa percepção solapou o apoio aos gastos em assistência às crianças. E veio acompanhada por uma crença generalizada em que ajudar as famílias pobres criava uma cultura de dependência, que era parcialmente responsável pelo colapso social nas zonas centrais das cidades americanas. Em parte como resposta a essa visão, a assistência a famílias, na forma modesta que existia, passou a vir cada vez mais acompanhada por precondições, como a exigência de que houvesse alguém empregado na família, ou tomava a forma de créditos tributários, vinculados à renda.

O resultado foi um declínio na assistência às crianças pobres que mais precisavam dela.

A esta altura, porém, sabemos que as explicações culturais quanto ao colapso social estacam completamente erradas. O sociólogo William Julius Wilson argumentou muito tempo atrás que a disfunção social nas grandes cidades não era causada por motivos culturais, mas pela falta de bons empregos. E sua visão foi confirmada pelo que aconteceu em boa parte da região central dos Estados Unidos, que registrou um desaparecimento semelhante dos bons empregos e um avanço semelhante das disfunções sociais.

O que isso significa é que estabelecemos um sistema peculiarmente vicioso sob o qual as crianças não podem receber a ajuda de que precisam a menos que seus pais encontrem empregos que não existem. E há cada vez mais provas de que esse sistema é destrutivo, além de cruel.

Múltiplos estudos constataram que programas de segurança social para crianças têm grandes consequências em longo prazo. Crianças que recebem nutrição adequada e cuidados de saúde ao crescer se tornam adultos mais saudáveis e mais produtivos. E além do lado humanitário desses benefícios, há uma compensação monetária, também: adultos mais saudáveis tendem a precisar menos de assistência pública e tendem a pagar mais impostos.

Seria provavelmente um exagero afirmar que ajudar as crianças é uma despesa que se paga sozinha. Mas certamente chega muito mais perto de fazê-lo do que os cortes dos impostos dos ricos.
Por isso, deveríamos estar falando muito mais sobre ajudar as crianças dos Estados Unidos. Por que não o fazemos?

Pelo menos parte da culpa cabe a Bernie Sanders, que fez do Medicare para todos um teste de lealdade para os progressistas e um objeto reluzente cobiçado pela mídia noticiosa em detrimento de outras políticas que poderiam melhorar muito a vida dos americanos, e que têm chance muito maior de se tornar lei. Mas não é tarde demais para mudar de foco.

Quem quer que se torne o candidato democrata, espero que ele ou ela dê ao tratamento vergonhoso do país às suas crianças a atenção que o assunto merece.

Tradução de Paulo Migliacci

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