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Transmasculines, boycetas, homens trans e a dificuldade de acesso a direitos sociais

Uma breve retrospectiva histórica e social de uma identidade coletiva

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Apollo Arantes

Boyceta, bissexual, ateu, antiproibicionista, pai e ativista pelo Ibrat (Instituto Brasileiro de Transmasculinidades) e MOVIHT-PE (Movimento Independente de Homens Trans e Transmasculinidades de Pernambuco)

Yudi Santos

Transmasculino, bissexual, candoblecista, antiproibicionista, pai e militante pelo Ibrat (Instituto Brasileiro de Transmasculinidades) e MOVIHT-PE (Movimento Independente de Homens Trans e Transmasculinidades de Pernambuco)

Os resgates históricos mostram que nós, pessoas trans, existimos em todos os períodos da história. No entanto, ainda somos tratados como um acontecimento do século 20, criado pelo saber-poder biomédico. É preciso entender de onde vem essa invisibilidade social e compreender que os processos históricos vivenciados pelas transmascunilidades perpassam, de maneira central, a luta pela sobrevivência.

Nicholas Iqueda, 23, que vive no Rio e ficou oito meses sem o hormônio testosterona depois de realizar o tratamento por quatro anos devido a alta no custo - Eduardo Anizelli/Folhapress

As necessidades básicas de uma pessoa trans são tão naturais quanto as de qualquer pessoa. Estudar, trabalhar, construir vínculos afetivos, todas essas questões são parte inerente à humanidade e ao exercício da cidadania.

Durante séculos fomos forçados a manter nossa identidade de gênero sigilosa para tentar garantir o mínimo de acesso às nossas necessidades básicas. Numa sociedade patriarcal-branca-cis-hétero que marca com a violência todas as pessoas que transgridem os limites impostos por essa supremacia, a única forma para tentar sobreviver às violências é a tentativa de enquadrar-se.

Uma prática comum das transmasculinidades para tentar garantir a existência foi o stealth, tecnologia utilizada para se "camuflar" como cisgênero. Pessoas transmasculinas faziam uso de procedimentos de gênero (hormônios e cirurgias), mudança de documentos e depois se exilavam em cidades onde podiam viver o anonimato. Esse anonimato sempre custou a saúde física e mental da nossa população.

No final do século 21, os movimentos sociais que defendiam as pautas LGBTI+ conseguiram se posicionar de forma mais contundente, fissurando as barreiras do patriarcado cis-hétero-branco.

Para os desentendidos esse posicionamento pareceu uma novidade saltando do armário, como se aquela realidade que sempre esteve diante da sociedade fosse uma novidade. Este momento político possibilitou a afirmação e acolhimento das identidades transmasculinas, pois até então o entendimento de nossa identidade enquanto construção coletiva era quase inacessível.

Assim, quando nos organizamos politicamente enquanto movimento social, passamos a nos deparar com narrativas supremacistas que tentam invisibilizar mais uma vez a nossa existência, deslegitimando-nos e apagando a nossa história. Narrativas violentas que nos posicionam em lugares de opressores, quando na realidade nós somos um dos grupos sociais mais afetados pelos poderes hegemônicos da nossa sociedade, que nos suicida, silencia e viola nossos direitos.

Pensar nas estruturações políticas é importante sobretudo para resgatar o contexto da saúde mental das transmasculinidades. Em 2012, Leonardo Tenório, durante atividade na ABHT (Associação Brasileira de Homens Trans), verificou que 18 das 20 pessoas transmasculinas presentes vivenciaram episódios de ideação suicida.

Em 2014, a pesquisa "FTM, transhomem, homem trans, trans, homem: A emergência de transmasculinidades no Brasil contemporâneo", de Simone Ávila, detectou que dos 34 homens trans participantes dois tentaram suicídio no período das entrevistas e outros seis tentaram suicídio em outro momento da vida.

Mesmo com avanços conquistados na Política Nacional de Saúde Integral LGBTI+ em 2011 e a inclusão dos homens trans no Processo Transexualizador do SUS em 2013, essas iniciativas do Estado não foram suficientes para a garantia de nossa saúde mental.

Em 2016, Roberto Maia, em sua pesquisa sobre suicídio das transmasculinidades verificou que entre os 242 transmasculinos da amostra, 66,4% tiveram ideação suicida e 41,5% tentaram suicídio, sendo que 74,8% destes realizaram mais de uma tentativa. Entre a população brasileira em geral, de acordo com o CVV, o índice de suicídio é de 3%.

Ainda em 2016 houve a 3ª Conferência Nacional LGBTI+, que levou mais de 40 homens trans e transmasculinos a construírem políticas públicas para esta população. Paralelamente, ocorreu a 12ª Conferência Nacional de Direitos Humanos na qual a transmasculinidade organizada do Ibrat (Instituto Brasileiro de Transmasculinidades) puxou inúmeras palavras de ordem para que a presidente Dilma assinasse o decreto do uso do nome social em serviços públicos naquele dia.

Dois anos depois, em 2018, o movimento transmasculino desenvolveu junto ao Ministério da Saúde a cartilha "Homens trans: vamos falar sobre prevenção de infecções sexualmente transmissíveis?" na tentativa de construir espaços para a discussão de nossas pautas. Após o lançamento da cartilha, em 2019, Jair Bolsonaro ordenou a sua remoção do site oficial do Ministério da Saúde, alegando conteúdo impróprio. Este foi um dos primeiros golpes sofridos pela população LGBTI+, direcionado mais diretamente às transmasculinidades.

É notório que todo esse processo estrutural de invisibilização contribui para o expressivo adoecimento mental da população transmasculina. O Observatório Anderson Herzer do Ibrat estima que a quantidade de suicídio da nossa população tenha aumentado em decorrência da ausência de políticas públicas.

Com o retorno de um governo progressista esperamos que essas políticas sejam retomadas, discutidas e viabilizadas para garantir às transmasculinidades o acesso aos direitos básicos e constitucionais.

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