Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Eliane Trindade

'Estou mais para Christiane F. do que para Bruna Surfistinha', diz ex-atriz pornô

Vanessa Danieli, conhecida por Barbara Costa, prepara livro sobre abusos na indústria de filmes adultos e traumas como sexofobia

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

A experiência de Barbara Costa no mercado do sexo vai virar livro. A obra será assinada com o nome de batismo da autora: Vanessa Danieli Costa dos Santos.

Aos 32 anos e despida do pseudônimo com o qual é conhecida em plataformas de filmes para adultos, ela diz escrever para lidar com traumas e alertar sobre abusos vividos ao longo de seis anos como atriz pornô.

Filha de uma empregada doméstica, ela conta como superou a depressão após se "aposentar", com a ajuda da terapia e do marido.

Concluiu a faculdade de marketing e tentou se estabelecer como youtuber, mas diz ter sido “triturada pelo machismo e misoginia” nas redes sociais. Sua página Barbaridade Nerd, no Instagram, tem 88 mil seguidores.

"Eu me aposentei da indústria pornô em 6 de novembro de 2016. Minha última gravação foi no dia 5, um filme lesbo. Apaixonada pela cultura nerd e geekie, meu plano A era me tornar uma youtuber, ficar rica e famosa. O plano B era me encher de remédio e me jogar do prédio.

Não sabia que ia ser triturada nas redes sociais. Nem imaginava que a galera era tão preconceituosa. Aprendi o significado de patriarcado, misoginia e machismo.

Abandonei a ideia de trabalhar com games e séries. Vi que não ia ganhar dinheiro com meu canal, que virou um hobbie.

Consegui concluir a faculdade de marketing e fiz estágios em agências trabalhando com mídias sociais. Por causa da pandemia, fiquei desempregada e o que me salva é a renda de publis fechados para marcas.

Estou aproveitando o tempo para estudar e escrever minha história.

Em 2010, eu trabalhava como garota de programa numa boate. Era o que tinha para fazer para ter o que comer. Uma amiga me convidou para um filme. O pornô é glamorizado. Imaginava que ia ter um set, com gente famosa. Nada disso. É igual prostituição, só que filmada.

A rotina é pesada, com exigência de sexo anal e com um monte de caras, fetiche, hardcore. Ninguém está ali por prazer. É por dinheiro.

O que chamam de filmes são gravações de vídeos de 30 minutos. Muita vezes, pagam o mesmo valor de um programa. O máximo que tirava era R$ 1.000. Muito pouco para o desgaste físico e emocional.

Os produtores ganham dinheiro subindo esses vídeos em plataformas que pagam por visualizações. Eu doaria um rim para tirar meus vídeos do ar. Perdi as contas de quantos fiz. Nunca vejo. Tenho pavor de imaginar que estão por aí na internet. Como Barbara Costa, mas a imagem é a minha.

Os caras gravam em sítio, casa alugada, motel e levam bebida para deixar a turma mais à vontade. Não bebia nada, me consideravam a fresca por não querer fazer isso e aquilo.

Não estava ali para me divertir. Eu me esquivava. As meninas bêbadas ficavam mais vulneráveis. Tenho 1m50, 40 kg, voz e aparência infantil mesmo agora com 32 anos.

Nasci em Mogi das Cruzes, em uma família desorganizada. O primeiro abuso que sofri foi aos cinco anos, de um velho que era ex-marido de uma tia para quem minha mãe trabalhava. Ele foi do Exército. Não tinha ideia do que ele estava fazendo comigo, ao me tocar. Fiz xixi nele.

Perdi a virgindade com 14 anos em um estupro depois de uma festa. Um cara me embebedou e me levou para a casa dele. Só depois entendi que tinha sido estuprada. A gente não aprende diferenciar essas coisas. Um parente meu ficou sabendo e se aproveitou da situação para fazer sexo comigo.

Com 15 anos, fui morar com meu pai e meus irmãos em São José dos Campos. Estudei mecânica no Senai e fiz estágio na Embraer.

A situação era difícil com minha família. Fui morar com meu primeiro namorado. Era um relacionamento abusivo. Quando ele terminou comigo para se casar com outra, vinha na minha cabeça uma frase que aquele meu parente abusador dizia. Que eu não servia pra nada que não fosse sexo.

Sempre mantive contato com minha mãe, mas ela não podia me dar suporte. Foi doméstica a vida toda. É nordestina, muito conservadora, não falava de sexo. Ela já me pediu desculpas por não ter me instruído. Levei quase dez anos para juntar um dinheirinho e comprar um apartamento pequeno para ela.

Passei por muitas dificuldades tentando caminhar sozinha. Não tinha sonhos nem direção. Faço terapia há três anos e três meses. Cuido da minha saúde mental. Ainda tenho pesadelos que estou trabalhando em boate.

Quando fui recebida com xingamentos e preconceitos nas redes sociais, precisei de muito remédio. Agora estou tomando apenas uma medicação, um estabilizador.

Adquiri sexofobia trabalhando na noite. Tenho medo de sexo. Tem a ver com o que passei. Não consigo ir a um dentista homem. Penso que ele vai me olhar diferente quando tiver que abrir a boca.

Fiz muitas cenas de podolatria, fetiche por pés. Em loja de sapatos, quero ser atendida por mulher. Fico imaginando que um vendedor vai se excitar.

Sou bissexual. Conheci meu marido na Campus Party de 2017, o primeiro evento que cobri como youtuber. É um programador de 36 anos. Não veio com gracinha nem colocou a mão em mim.

Estava tentando mudar de vida e, sem perspectivas, me debatia entre ser youtuber ou me suicidar. A última coisa que imaginava era encontrar alguém que quissesse se casar comigo. Só que o relacionamento deu certo. A primeira coisa que fiz foi contar pra ele tudo que vivi na indústria pornô, de A a Z.

Ele só me questionou sobre o que eu queria fazer da vida. Respondi que queria me formar em marketing e ele me apoiou. Eu me formei ano passado na Faculdade das Américas.

Por causa dos meus medos, meu marido me levava e buscava na faculdade todos os dias. Tenho o privilégio de estar com um homem a frente do seu tempo. Não vou falar como é a nossa vida sexual. É a intimidade dele também.

Meus colegas levaram dois meses para descobrir a cor do meu cabelo e mais de um semestre para saber que tenho tatuagens – e são 23.

Eu só me arrumo para ir a eventos. Não quero chamar atenção na rua. Eu me protejo para o caso de descobrirem que sou Barbara Costa e tentarem algo. Ando com taser [aparelho de choque para defesa pessoal] e com spray de pimenta.

Não tenho como apagar meus traumas, mas sigo em frente. O livro é meu pote de ouro no fim do arco-íris. Uma editora está avaliando. Querem algo na linha Bruna Surfistinha ou '50 Tons de Cinza', mas não é a minha. Não quero fazer um livro de sexo, mas falar de abusos, conscientizar.

Minha experiência está mais para Christiane F. [garota alemã que narrou sua vida como usuária de droga e prostituta]. Só li o resumo da história dela. Evito livros e filmes que me fazem chorar e podem desencadear fortes emoções.

Quero passar o que aprendi para frente. As meninas que estão no pornô ou se prostituindo não vão falar mal do que estão fazendo. Já estive no lugar delas, sei que precisam sobreviver. A engrenagem da indústria pornográfica é muito forte. Está aí há milênios.

O pornô é feito por homens e para homem, com fetiche e demandas masculinas, um manual de como as mulheres devem se comportar e servir a eles na cama.

Não virei conservadora nem quero boicotar o trabalho das atrizes e prostitutas, mas aprendi o que é feminismo.

Muitas mulheres lutaram para a gente poder estudar, votar, para que tenhamos consciência e oportunidades sem precisar vender o corpo e se submeter a essa engrenagem da indústria do sexo. ​

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.