Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

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Fé e Brasil ficam na berlinda em meio à guerra espiritual e eleitoral

Bolsonaro encampa ideologia de um Brasil governado por Deus, com influência cristã em todas as esferas, o que ameaça o Estado laico, diz ala progressista

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São Paulo

"Não é uma urna que vai definir se Cristo está do meu lado ou não." É assim que o pastor Lucinho Barreto, da Igreja Batista da Lagoinha, de Belo Horizonte (MG), responde sobre uma hipotética derrota de Jair Bolsonaro (PL) para Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na eleição a ser definida neste domingo (30).

O vídeo postado no Instagram na segunda-feira (22) é parte do sermão "Quando Deus me desafia", de um dos líderes pops do conglomerado religioso de 90 mil membros comandados pela família Valadão.

Lucinho foi uma das estrelas da Conferência Global 22 Renascimento, realizada em Brasília de 12 a 15 de outubro, na qual bispos e pastores profetizaram um Brasil governado pela igreja com Bolsonaro.

Pastor Lucinho Barreto, da Igreja Batista da Lagoinha (BH), foi uma das estrelas da Conferência Global 22 - Reprodução/Comunidade das Nações

"Eu quero que a política saia de um determinado jeito. Se não sair, tenho de entender que Deus está comigo e não acontecerá do jeito que o capeta está querendo", prossegue o pastor para os 2,3 milhões de seguidores.

A fala de Lucinho, incansável cabo eleitoral de Bolsonaro, coincide com repercussão negativa da prisão do ex-deputado Roberto Jefferson (PTB), que recebeu a Polícia Federal com disparos de fuzil e granadas. Em vídeo, ele justificou previamente a reação "em nome de Jesus e da Família".

A dias do segundo turno, pesquisas mostravam o candidato petista com pequena margem à frente.

A reeleição de Bolsonaro é almejada por lideranças evangélicas conservadoras para coroar projeto fundamentalista que prega um país governado por valores cristãos.

Posição defendida pelos "barões da fé", como os televangelistas Edir Macedo (Universal do Reino de Deus) e Silas Malafaia (Assembleia de Deus).

"Igrejas evangélicas com presença na mídia e influência política são parceiras do projeto ultraconservador do governo Bolsonaro, que nega direitos e explora a fé", afirma o teólogo Ronilso Pacheco, autor do livro "Ocupar, Resistir, Subverter: Igreja e Teologia em Tempos de Racismo, Violência e Opressão".

A resistência vem de vozes progressistas de várias denominações em defesa de um estado laico. Na segunda (22), o grupo "Fraternidade do Evangelho", liderado pelo reverendo presbiteriano Caio Fábio, emitiu nova de apoio à democracia constitucional.

"Nosso Senhor é Jesus e nossa expressão cidadã e laica volta-se em apoio a Lula, por crermos que ele carrega as competências para tirar o Brasil desse pantanal bolsonarista."

Será complicado ter, ao final do processo eleitoral, um Deus perdedor. Só muito contorcionismo teológico para explicar como o Todo-Poderoso perde uma eleição

Magali Cunha

pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (Iser)

O resultado das urnas pode colocar em xeque a profecia de que "Bolsonaro é um novo messias".

"Será complicado ter, ao final do processo eleitoral, um Deus perdedor. Só muito contorcionismo teológico para explicar como o Todo-Poderoso perde uma eleição", avalia Magali Cunha, pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (Iser).

Autora de "Do Púlpito às Mídias Sociais: Evangélicos na Política e Ativismo Digital", ela acompanha o desenrolar de uma batalha espiritual que tem raízes históricas, mas é alimentada por fatos novos.

A novidade nas eleições 2022 é a unidade de grupos evangélicos distintos para angariar poder político com o propósito de implantar no país a chamada Teologia do Domínio ("o governo de Deus sobre todas as nações").

Um projeto de poder que se casa com interesses econômicos e com a conveniência de verdadeiras corporações da fé, diz a pesquisadora.

"O que está em jogo não é ideologia, mas interesses corporativos de igrejas que lucraram muito com o governo Bolsonaro", afirma Magali. "Tivemos pastores no MEC, no Ministério da Saúde, ligados à compra de vacina e a ações sociais."

Ela cita ainda o perdão de dívidas de igrejas com a Receita Federal e INSS.

O protagonismo evangélico na gestão Bolsonaro, que se elege em 2018 com o discurso de "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos", tem como expoente a pastora Damares Alves, ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

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A primeira-dama Michelle Bolsonaro e a senadora eleita Damares Alves (Republicanos-DF) participam de evento de campanha na Aliança Pela Vida, no Espaço Immensità, em Sâo Paulo - Foto: Zanone Fraissat/Folhapress

A senadora eleita pelo DF e a primeira-dama Michelle estão em tour pelo país no segundo turno pelo voto de mulheres evangélicas, 60% do público das igrejas.

A dupla dissemina os lemas "Jesus Cristo é o Senhor da Nação" e "Deus, Pátria, Família e Liberdade", motes de campanha que expressam o fundamentalismo cristão.

Exercer influência na vida do país é uma ideologia trazida dos Estados Unidos por missionários batistas, presbiterianos, metodistas e luteranos que aportaram no Brasil no século 19.

"Essa doutrina do Destino Manifesto é uma crença de que o povo americano foi eleito por Deus para civilizar o continente", explica o pastor Ed René Kivitz, da Igreja Batista de Água Branca, em São Paulo.

Voz dissonante por apontar os riscos do bolsonarismo, o teólogo lembra que o protestantismo brasileiro nasce com a vinda de missionários do sul dos Estados Unidos, "berço do fundamentalismo e nacionalismo cristão".

Ideologias difundidas por organizações como Jocum (Jovens com uma Missão), liderada no Brasil pelo pastor Marcos Borges, o Coty, ligado a Damares.

A ONG missionária internacional, segundo o site oficial, "empenha-se em mobilizar e treinar cristãos de todas as nações" para influenciar política, economia, ciência, cultura, artes, mídia e família.

O pastor Ed René Kivitz, voz dissonante entre os evangélicos contra o bolsonarismo, alerta sobre os riscos do fundamentalismo cristão para a democracia - Danilo Verpa/Folhapress

"São fundamentalistas que acreditam que devem influenciar toda a sociedade, governar e controlar as áreas que estruturam a matriz cultural e o tecido social", diz Kivitz.

Ele se refere à "soberania das sete esferas", expressa na estrutura da Universidade das Nações, que no Brasil funciona na Jocum Almirante Tamandaré, no Paraná.

Para tal missão, a Jocum conta com 17 mil obreiros em 170 países. A universidade é estruturada em sete faculdades para "equipar pessoas" que vão atuar a serviço da sociedade local ou em países nos quais não possam entrar como missionários tradicionais.

Esse movimento global em defesa dos fundamentos da fé cristã vai ganhando conotação política ao longo do século 20.

No contexto da Guerra Fria, o comunismo vira o inimigo que ameaça a liberdade religiosa. Discurso apropriado pela direita brasileira pró-Bolsonaro contra o esquerdista Lula.

"Nos anos 1960, o movimento por direitos civis nos Estados Unidos vai ser confrontados por esses fundamentalistas cristãos, supremacistas brancos que foram abraçados pelo Partido Republicano", explica Magali.

Uma década depois, a nova direita cristã norte-americana construía o discurso político da Teologia do Domínio, de colocar Deus no poder.

A filósofa e teórica política americana Wendy Brown sinaliza para a "desdemocratização" como consequência desse avanço fundamentalista cristão nos EUA.

Ela aponta uma erosão gradual do tecido democrático, deflagrada com a "guerra ao terror", após o 11 de Setembro, e a crescente interferência do conservadorismo religioso nas políticas públicas.

É emblemática a reversão do direito constitucional ao aborto pela Suprema Corte americana, em junho.

O conservadorismo chega também ao judiciário brasileiro por meio de Bolsonaro, ao indicar um ministro "terrivelmente evangélico", André Mendonça, para o Supremo Tribunal Federal, e a promessa de ampliar o número de membros na corte caso reeleito.

Antes disso, evangélicos tiveram papel relevante na cruzada judicial contra a corrupção, com o procurador batista Deltan Dallagnol, à frente da Operação Lava Jato, ao lado do ex-juiz Sérgio Moro, que foi ministro da Justiça de Bolsonaro.

Ao aparelhamento no Executivo e à ocupação de espaços no Judiciário se soma o aumento de representatividade no Legislativo. A agenda conservadora une evangélicos a ruralistas e à frente da segurança pública nas chamadas "bancadas BBB" (da bala, do boi e da Bíblia) no Congresso Nacional.

O avanço da presença conservadora nos Três Poderes leva ao temor de que o Brasil possa caminhar para um Estado teocrático.

"Cremos que um governo influenciado por valores cristãos não é uma teocracia. Pelo contrário, ele dá liberdade a cada religião de se manifestar, ter sua voz e adorar o Deus que achar melhor", afirma o bispo JB Carvalho, da Comunidade das Nações, realizadora da conferência em Brasília.

O evento teve como tônica a Teologia do Domínio, expressa na "profecia de um Brasil governado por valores cristãos", que leva ao questionamento sobre a separação entre igreja e estado.

"O Brasil adota um modelo de Estado laico de não interferência e liberdade religiosa. Todas as religiões são livres para professar sua fé e todos podem vivê-la conforme sua moral e seus princípios", entende Thiago Vieira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR).

Membro da Comissão Especial de Liberdade Religiosa da OAB, Vieira diz que a ideia de a igreja governar os rumos do país é uma visão teológica. "Como somos uma democracia, existe liberdade para que se expresse essa visão de mundo."

O advogado batista entende como natural parlamentares cristãos tentarem emplacar pautas defendidas pela igreja e serem contrários àquelas que veem como pecado.

"Ao se eleger, o deputado batista não deixa de ser batista e vai fazer o possível para que nenhuma lei pró-aborto seja aprovada", exemplifica. "O Estado laico não pode interferir no que acredito e nos valores que regem minha vida, mas todos devem poder influenciar na arena pública."

Ao se eleger, o deputado batista não deixa de ser batista e vai fazer o possível para que nenhuma lei pró-aborto seja aprovada

Thiago Vieira

presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR)

Vieira argumenta que o Brasil está longe de uma teocracia islâmica, como no Paquistão e no Afeganistão, onde cristãos não têm voz e o povo vive sobe a sharia, lei civil e religiosa que governa a todos.

"O que temos no Brasil é uma bancada da Bíblia que não quer apenas influenciar, mas legislar a partir da moral religiosa de seus representantes", avalia Kivitz. "É um equívoco."

O pastor foi expulso da Ordem dos Pastores Batistas do Brasil por defender a atualização da Bíblia, "sob pena de continuarmos, em nome de Deus, praticando violências e injustiças de gênero, de raça e de classe social".

Kivitz faz um alerta sobre o fundamentalismo antidemocrático. "Religião é opção, não pode ser imposta. Não queremos que o estado islâmico imponha a sharia aqui. Então, nós cristãos não podemos fazer o mesmo com nossa fé."

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