Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

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Medo, falta d'água e alagamento são rotina em áreas de risco no litoral norte

Na Vila Sahy e no Morro do Pantanal, duas das comunidades mais afetadas pelas chuvas, população vive precariamente à espera de recursos doados a ONGs e promessas do poder público

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Gisele Jesus da Silva, 31, desempregada e sem auxílio, voltou a morar em zona de risco na Vila Sahy, perto da travessa onde foram retirados 45 corpos de vítimas da tragédia no Carnaval Marlene Bargamo/Folhapress

São Sebastião (SP)


"Aqui a água sempre chega primeiro", diz a aposentada Francisca Alves, 65, moradora do bairro Baleia Verde, escolhido pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) para a construção de 518 novas moradias para famílias desabrigadas pelo temporal no Carnaval.

Nesta terça-feira (13), ela diz ter ficado horrorizada com as imagens da rua principal e do canteiro de obras alagados em razão das fortes chuvas que voltaram a castigar São Sebastião.

Cinco dias antes, a cearense que por décadas trabalhou como doméstica na casa de veraneio de uma família quatrocentona de São Paulo, lamentava o fato de os alagamentos terem piorado na comunidade "depois da construção da rede de esgoto que serve às mansões da Baleia, a praia dos ricos".

Em nota, a CDHU afirma que "o terreno é um local seguro e plano e que vem trabalhando em conjunto com os órgãos envolvidos nas obras para resolução desta questão de macrodrenagem".

Canteiro de obras da CDHU no bairro Baleia Verde, para onde serão encaminhadas as famílias que perderam suas casas na tragédia no Carnaval; o local registra constantes alagamentos, segundo os moradores - Marlene Bergamo/Folhapress

Francisca perdeu dois carros no temporal de fevereiro. "Minha filha perdeu tudo que tinha em casa", relata. Elas foram cadastradas pela Fundação Getúlio Vargas para o projeto Recomeço, do Instituto Verdescola. "Estamos aguardando essa ajuda, o prejuízo foi grande."

Ainda desabrigada, Gisele de Jesus, 31, está morando de favor com os filhos na casa de um ex-namorado no alto do morro da Vila Sahy, bem próximo da antiga travessa São Jorge, de onde foram retirados 45 corpos de vítimas da tragédia.

Desempregada, ela ficou por meses morando de favor na casa de um advogado na Barra do Sahy.

A Baleia Verde é um alagado. Em vez de carro na garagem, lá tem que ter bote

Ana Cláudia Borges

morada da Vila Sahy, sobre o bairro escolhido para construir novas moradias

"Não recebi o cartão com os R$ 400 das doações, porque tinha recebido cestas básicas", diz Gisele. Integrante do grupo dos "sem-auxílio", ela diz ter sido cadastrada pela FGV, mas crítica a demora em liberar os "milhões que o povo do Brasil inteiro mandou para ajudar os moradores da vila na emergência".

A doméstica também teve o pedido de auxílio aluguel negado pela Prefeitura de São Sebastião. Não se enquadrou nos critérios para receber um salário mínimo, valor insuficiente para alugar qualquer imóvel na comunidade, diz ela, desde que o aumento da procura inflacionou os preços.

Segundo a assessoria, a prefeitura dispõe de R$ 1,5 milhão para abrigamento e recebeu 835 pedidos de auxílio aluguel de R$ 1.550, dos quais apenas 99 foram deferidos e 56 contratos assinados.

No momento em que a Defesa Civil decretou estado de alerta novamente na região por causa das chuvas, 293 pedidos ainda estão pendentes.

"O aluguel aqui é muito caro, aumentou para R$ 2.500. A gente vive a preço de turista", afirma Ana Cláudia Gomes, 43, que rasgou o aviso de interdição e voltou para a casa em área de risco na Vila Sahy.

Da janela, enxerga a destruição do morro desmoronado à frente. "Minha filha pequena ficou traumatizada. Tem pesadelos depois de ver os corpos passando sem a gente poder fazer nada."

Ela ficou desempregada logo depois da catástrofe e trabalha como autônoma. "Não recebi nada da prefeitura nem das ONGs. O apoio que eu tive foi da igreja."

A moradora ressalta que não pede favor, uma vez que São Sebastião tem um orçamento previsto de R$ 700 milhões em 2023. "O município é um dos mais ricos do país, passa bastante oleoduto, tem bastante arrecadação."

Ana Cláudia ainda espera o socorro das ONGs e não se anima com a perspectiva de mudar para conjunto habitacional da CDHU. "Vamos ficar 30 anos pagando e ainda por cima em áreas que são de risco, como a Baleia Verde, que é um alagado. Em vez de carro na garagem, lá tem que ter bote."

Depois de passar 60 dias em pousadas da região, o eletricista Valderedo Flor de Lima, 56, foi autorizado a voltar para o barraco no alto do Morro do Pantanal, em Juquehy. Em fevereiro, a Defesa Civil determinou a "interdição definitiva com desmonte do imóvel para evitar acidentes, salvaguardar vidas e prevenir danos ao patrimônio".

O pernambucano radicado na região há 32 anos agora exibe um novo laudo do IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas), com recomendação de retorno para um dos locais mais afetados pela catástrofe, mediante monitoramento e plano de contingência.

"Eu sei que aqui é zona de risco, mas voltei para o que é meu", diz. Na noite de terça, ele chegou em casa atravessando a enxurrada que alagou as ruas na parte baixa do Pantanal. "Mas aqui em cima do morro está tudo tranquilo."

Em nota, o governo do Estado de São Paulo informa que nos meses de abril e início de maio, os institutos técnicos (IPA e IPT) e a Defesa Civil Municipal realizaram novas vistorias nos imóveis, a fim de retificar ou ratificar laudos elaborados nos primeiros dias da tragédia.

"Alguns imóveis foram reclassificados com base em novas avaliações técnicas, e os moradores orientados sobre os procedimentos que deveriam adotar."

Lima não recebeu telefonema da Defesa Civil frente ao novo estado de alerta. "Aqui não aparece governantes. A gente paga imposto até no copo de água que bebe e a resposta que tem deles é essa", diz o eletricista, que se ressente também da falta d’água.

Ele tem se valido de galões que precisa carregar "no lombo", morro acima, diariamente para beber, cozinhar, tomar banho. "É um pesadelo."

Na manhã da quarta-feira (7), ele venceu uma escadaria de 100 degraus e vielas sinuosas para chegar ao alto do morro carregando nas costas uma geladeira nova e um fogão novos.

Ele acomoda no cômodo único e sem reboco, que serve de quarto, sala e cozinha, os eletrodomésticos doados pela Petrobras, via União BR, movimento solidário surgido na pandemia, e o Projeto Recomeçar, ONG de Juquehy que tem apoiado as 64 famílias desabrigadas pelas chuvas na comunidade.

"Muitos tinham o laudo vermelho e não poderiam retornar para cá, mas agora receberam o amarelo e estão voltando", explica a presidente da ONG Recomeçar, Valéria Giamellaro. "A condição que eles estão morando é inacreditável. Um barraco aqui caiu essa semana."

Ela se refere ao casebre da filha de Fábio Macedo Santos, que desabara na noite da segunda-feira (5). "Graças a Deus não tinha ninguém em casa", diz o ajudante de pedreiro, ao mostrar os estragos na construção precária, cujo teto foi ao chão.

O barraco destelhado fica próximo de onde foram retirados os corpos dos três moradores mortos na fatídica noite de 19 de fevereiro, quando parte do morro veio abaixo.

Valeria Giamellaro, presidente da Projeto Recomeçar, ONG de Juquehy, que em parceria com a Uniao BR, doou geladeiras e fogões novos para moradores que voltaram para suas casas no Morro do Pantanal, um dos mais atingidos pelas chuvas no Carnaval - Marlene Bargamo/Folhapress

"Falta esperança no poder público", diz Valéria. "O que podemos fazer é deixar a vida deles um pouco mais confortável."

Para Lima e os vizinhos, o maior desconforto no momento é a água chegar barrenta e fedida nas torneiras ou simplesmente não chegar mais, pelo fato de o sistema de abastecimento precário de antes ter sido destruído com o mar de lama.

"Se eu tivesse dinheiro para comprar dez rolos de mangueira e uma caixa d’água, resolvia o problema para todo mundo aqui em cima", afirma o eletricista, ao calcular em R$ 1.500 a solução do drama emergencial.

"Falaram que doaram muito dinheiro para a gente que sofreu com a chuva, mas até agora não chegou nenhum no meu bolso", desabafa o morador.

O mesmo lamento da Maria José, cuja aposentadoria mal dava para pagar o aluguel da casa que rachou com as chuvas. "Fiquei quase um mês na igreja e bati o recorde de passar por cinco pousadas até chegar aqui na Topolândia", diz ela, sobre a vila de passagem para onde se mudou no começo do mês.

É na construção de madeirite, financiada pelas doações feitas à Gerando Falcões, que ela vai aguardar a concretização do sonho da casa própria.

Já fez o cadastro na CDHU e cita detalhadamente tudo que recebeu de doação até o momento: material de limpeza e higiene, cestas básicas, geladeira, fogão, micro-ondas, ventilador, cama, colchão, panela, talheres, botijão de gás.

"O povo brasileiro está de parabéns. Teve muita doação, o que melhora muito a vida de quem perdeu tudo. Só o dinheiro vivo que não chegou mesmo por aqui."

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