Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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Reinaldo José Lopes
Descrição de chapéu Oscar

Nosso tempo, nosso lugar

Em termos cósmicos, somos maiores do que diz o roteiro de 'Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo'

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"Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo", o grande ganhador do Oscar deste ano, é um filme de coração enorme e cabeça meio fora do lugar. O que cá, entre nós, não é a pior das misturas —as coisas tendem a ficar muito mais feias quando esses fatores se invertem. Creio que é instrutivo abordar alguns dos pressupostos científicos por trás das aventuras da família Wang na narrativa —não para apontar "erros" da história, claro, mas porque ela revela detalhes interessantes sobre como muita gente passou a metabolizar a ciência moderna.

O primeiro grande bode na sala é, claro, o conceito de Multiverso, quase banalizado após tantos filmes da Marvel martelando a ideia. Uma coisa que o filme estrelado por Michelle Yeoh não explica (e tudo bem, porque isso seria derrubar sua premissa, afinal de contas) é que, ao menos por enquanto, esse negócio de Multiverso não é muito mais do que um grande tapa-buraco, um Band-Aid cosmológico e filosófico.

Cena do filme 'Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo'
Cena do filme 'Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo' - Allyson Riggs/Divulgação

A ideia de que existem infinitos universos por aí deriva, em grande parte, da incapacidade de explicar porque o nosso Cosmos —o único cuja existência foi demonstrada até agora, convém lembrar— passa a sensação de ter sido "configurado" de um jeito muito específico.

Essa configuração, que envolve, por exemplo, o tamanho exato das partículas elementares que compõem tudo o que existe, permitiu o surgimento de estrelas, sistemas solares e seres vivos. Como não há explicação nenhuma para as origens dessa regulagem cosmológica, o Multiverso é usado como estepe. Existiria uma infinidade de universos sem vida —feito aquele das pedras com olhinhos no filme, lembra?—, e a gente simplesmente deu sorte de estar num dos Cosmos "férteis". As chances de testar essa hipótese de maneira experimental algum dia são baixíssimas, ainda que não inexistentes.

O Multiverso, porém, é só a cereja do bolo num tema que reaparece nas conversas entre mãe e filha da família Wang. Afinal de contas, diz a filha, se cada nova descoberta mostra como somos minúsculos perto do Cosmos (mesmo que ele seja um só), que significado tem qualquer coisa que façamos?

Esse tipo de questionamento é comum, mas ele me parece perder o foco do que realmente importa. A constatação de que o nosso Sol é uma estrelinha de nada nos cafundós da galáxia ignora o fato de que coisas complexas e frágeis como a vida multicelular só têm condições de surgir em lugares pacatos e obscuros.

Isso porque estrelas grandalhonas no centro de uma galáxia têm ciclo de vida curto e estão sujeitas a forças gravitacionais dilaceradoras. Ou seja, não há como a vida complexa surgir ao redor delas, porque ela precisa de estabilidade e tempo —bilhões de anos— para aparecer. Em outras palavras, estamos exatamente onde deveríamos estar.

O filme se redime de seu prolongado flerte com o niilismo ao colocar a gentileza e os laços de amor como a solução dos dilemas dos Wang. E é aqui que dou minha pirueta argumentativa final. Pode me chamar de piegas —"mea culpa, mea maxima culpa"— mas sou capaz de apostar que o amor é um fenômeno inevitável onde quer que exista vida inteligente.

Digo isso porque inteligências como as nossas, pelo que sabemos, dependem profundamente de uma infância prolongada e de laços sociais duradouros para evoluir. Assim, onde quer que as condições sejam apropriadas no Universo (ou no Multiverso, portanto), algo muito parecido com o amor humano será um correlato indissociável da vida inteligente. E esse, como dizia um velho sábio, é um pensamento encorajador, para a família Wang e para todos nós.

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