Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Reinaldo José Lopes

Como Jane Goodall revolucionou o que sabemos sobre os chimpanzés

Sem formação na área no início, inglesa identificou ferramentas, caça e 'guerra'

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Com esta coluna, gostaria de celebrar uma vida extraordinária. Na semana que passou, a primatóloga e conservacionista britânica Valerie Jane Morris-Goodall, nascida em Londres em 3 de abril de 1934, completou seus 90 anos de idade. A trajetória de Jane Goodall transformou a maneira como enxergamos os chimpanzés, nossos primos de primeiro grau na Árvore da Vida, em grande parte graças ao olhar corajoso e pouco convencional com que ela passou a observá-los a partir de 1960.

Como estamos na era das listas –e, confesso, gosto de listas bem-feitinhas sobre assuntos interessantes– apresento abaixo três pontos-chave da trajetória da pesquisadora –e de suas colegas.

Jane Goodall com o seu macaquinho de pelúcia (apelidado por ela de Mister H) em evento na capital paulista
Jane Goodall com o seu macaquinho de pelúcia (apelidado por ela de Mister H) em evento na capital paulista em outubro de 2023 - Eduardo Knapp/Folhapress

1) O triunfo da mais pura cara de pau: os feitos de Goodall, ao menos da maneira como aconteceram, provavelmente seriam impossíveis no ambiente muito mais formalizado e competitivo da ciência atual. Mas, no contexto muito diferente da época, na base da cara de pau e da persistência, uma moça que não tinha chegado a passar pela universidade conseguiu convencer Louis Leakey, então um dos principais estudiosos da evolução humana no planeta, a enviá-la para observar o cotidiano dos chimpanzés no Parque Nacional de Gombe, na Tanzânia.

A jovem pesquisadora acabaria iniciando seu doutorado diretamente na Universidade de Cambridge, concluindo o trabalho em 1966 com base em seus primeiros anos de trabalho de campo em Gombe.

2) Nem anjos, nem demônios, feito nós: a compreensão da complexidade comportamental dos chimpanzés na natureza é o grande legado do trabalho de Goodall (compartilhado, é claro, com diversos outros cientistas na ativa desde então).

Ela documentou, de um lado, a intensidade dos laços sociais entre os primatas, adotando o uso de nomes próprios –David Barba-cinzenta, Golias, Frodo– que, conscientemente ou não, contribuíram para a percepção de que cada um daqueles símios era um indivíduo, com sua própria personalidade.

Seu trabalho mostrou ainda que o uso e até a fabricação de ferramentas (normalmente a partir de galhos, folhas e outras estruturas vegetais) era parte importante dos hábitos da espécie. Com o passar das décadas, acabaríamos descobrindo que existem "tradições culturais" de uso de instrumentos, variando de população para população de chimpanzés, bem como coisas parecidas em outros animais, como golfinhos, elefantes e corvos.

Goodall também foi pioneira na observação da caça cooperativa entre os grandes símios –e na percepção de que uma forma de "guerra" podia acontecer entre comunidades de chimpanzés. Chegou a ser criticada pelas metodologias que usava –como a oferta de alimento aos macacos, depois interrompida–, mas estudos de longo prazo com outras comunidades da espécie mostrariam que suas conclusões estavam essencialmente corretas.

3) Uma das "Trimatas": o protagonismo de Goodall às vezes faz as pessoas esquecerem que ela é apenas a integrante mais famosa do trio de pesquisadoras conhecidas como as "Trimatas" (é, eu sei, já houve trocadilhos melhores do que esse com "primatas"...), ou ainda as "Leakey’s Angels" (referência às combatentes do crime "Charlie’s Angels", ou "As Panteras", em português).

Enquanto ela se dedicava aos chimpanzés, a americana Dian Fossey (1932-1985) foi enviada por Leakey para trabalhar com os gorilas-da-montanha em Ruanda, na África Oriental. Por fim, Biruté Galdikas, 77, antropóloga canadense de origem lituana, foi para a ilha de Bornéu estudar orangotangos.

Juntas, as "Trimatas" traçaram um quadro abrangente da diversidade comportamental de quase todos os grandes símios viventes. Não se pode subestimar a importância de seu trabalho não apenas em termos de avanço do conhecimento, mas também de defesa dessas espécies, acuadas pelo desmatamento, mineração e tráfico de animais. Graças a elas, temos uma ideia muito mais clara da preciosidade que é compartilhar um planeta com esses parentes tão próximos.

Reinaldo José Lopes
Reinaldo José Lopes

Repórter de ciência e colunista da Folha. Autor de "Homo Ferox" e "Darwin sem Frescura", entre outros livros

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.