Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira

A diferença entre Jerry Lewis e Jerry Lee Lewis

Piadas não mobilizam ninguém para a guerra, o mais provável é que desmobilizem

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Um olhar menos atento faz com que muitas pessoas não enxerguem a diferença entre humor e música, e até que considerem que são aparentados. O fato de tanto o músico como o humorista estarem muitas vezes no palco, perante uma plateia, segurando um microfone, contribui para a confusão.

E, no entanto, basta olhar para o modo como cada um se relaciona com o microfone, por exemplo: Para o cantor faz parte do espetáculo, ele inclina o pé do microfone como se estivessem a dançar juntos; para o humorista o pé do microfone é uma peça de mobiliário que lhe é estranha.

O músico, normalmente, está confortável no palco. É a sua casa. Para o humorista, é quase sempre um lugar hostil. O mesmo vale para a relação com o público. O público que vai ver um espetáculo de comédia é um adversário que o humorista tem de sacudir com a gargalhada.

No desenho de LP um homem branco de cabelos bem cortados curtos segura o microfone com a mão esquerda e com a direita retira o pedestal do chão inclinando-o. Ele veste calça, botas e camiseta. O fio desse microfone faz o olhar do leitor encontrar do lado direito do desenho - outro homem que também segura um microfone na mão esquerda e com a direita enrola o fio por entre os dedos. Este homem é também branco, de cabelos curtos e veste terno, camisa, gravata e sapatos com cadarço.
Ilustração de Luiza Pannunzio para coluna de Ricardo Araujo Pereira de 5 de maio de 2024 - Folhapress

Mas o público que vai a um concerto é um amigo do cantor, que vai para ser embalado. O público do concerto está com o músico: conhece as canções e canta-as com ele. Simpatiza com a emoção que o músico exprime e sente-a também, através da música.

O público da comédia não quer ouvir os grandes êxitos do humorista, pelo contrário: exige ser surpreendido. Mesmo que conheça o humorista, quer que ele se apresente como um estranho que diz coisas novas.

O público reconhece as emoções que o cantor exprime, porque também já as experimentou, e às vezes chora ao senti-las de novo; e mesmo quando reconhece os pensamentos que o humorista confessa, porque também já lhe ocorreram, ri-se dele, porque não são coisas que se confessem em público.

A música eleva, mesmo quando o cantor se rebaixa; a comédia rebaixa, mesmo (ou sobretudo) quando o humorista se diz elevado.

No dia 20 de março de 1965, durante uma atuação no The Andy Williams Show, Jerry Lewis caiu no palco. A queda causou-lhe uma lesão da qual nunca mais haveria de recuperar. Dessa vez, a queda foi involuntária, mas toda a gente pensou que era proposital.

"Afinal", diz Lewis numa autobiografia, "eu tinha passado uns bons 25 anos a cair nos palcos." Jerry Lee Lewis pode cantar quedas metafóricas; Jerry Lewis apresenta quedas reais (que além disso também são metafóricas).

É possível que humor e música se concentrem na queda, mas o humor concentra-se no movimento de cair, e a música no ato de se reerguer. Talvez seja por isso que temos um hino nacional, mas não uma piada nacional. Piadas não mobilizam ninguém para a guerra. Aliás, o mais provável é que desmobilizem. Ainda bem.

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