Rodrigo Tavares

Professor catedrático convidado na NOVA School of Business and Economics, em Portugal. Nomeado Young Global Leader pelo Fórum Econômico Mundial, em 2017

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Rodrigo Tavares
Descrição de chapéu Independência, 200

Portugal precisa do Brasil para ser português?

País precisa acreditar que exerce influência sobre o Brasil, e que tem seu respeito

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Não há nenhum outro caso semelhante na História. Depois de ter sido o artífice da independência de uma ex-colônia, D. Pedro volta à metrópole para assumir a coroa do colonizador acrescentando ao título régio a expressão "defensor perpétuo do Brasil."

Nos últimos 200 anos, celebrados nesta quarta-feira (7), a relação entre os dois países independentes foi-se modelando, ao longo do tempo, de acordo com oscilantes interesses nacionais, circunstâncias inesperadas, visões ideológicas cíclicas e afeições pessoais entre alguns líderes.

Nada que seja incomum nas relações internacionais entre Estados. Mas, no caso do Brasil e Portugal, há um elemento imaterial que torna a relação incomparável e complexa: a consciência autoinduzida, por parte de Portugal, do seu excepcionalismo.

dom pedro está ao centro da imagem, com a espada em riste. dezenas de soldados o rodeiam em cavalos, seguindo o seu exemplo e celebrando a proclamação. ao fundo, vê-se uma fazenda e as serras do vale
Tela de Pedro Américo, finalizada em 1888, imagina a cena da proclamação da Independência do Brasil, com dom Pedro ao centro montado sobre um cavalo - Reprodução/ Livro "O Sequestro da Independência"

Como ensinaram os republicanos brasileiros, as identidades coletivas podem ser moldadas. E, ao longo de centenas de anos, a identidade portuguesa foi forjada em torno da ideia de que a vulnerabilidade do país (pobreza, pequenez territorial e isolamento geográfico) pode ser superada pela heroicidade do seu povo.

A função messiânica do país, como nação pluricontinental, miscegenadora e multirracial, é um elemento estruturante da sua identidade. Camões, António Vieira, Pessoa, Freyre celebraram-na sem meios-tons.

Tal como a celebram todos os governantes portugueses contemporâneos, de todos os matizes partidários, que enfatizam, em discursos públicos, o impulso português para o universalismo. São também recorrentes as obras públicas contemporâneas com nomes de navegantes que deram "novos mundos ao mundo".

A partir de 1974, com o fim do império colonial e o enxugamento territorial do país, Portugal apropriou-se da ideia de lusofonia para continuar a irradiar a sua influência pelo mundo. Criou a CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), com sede em Lisboa e atualmente com nove países membros, incluindo o Brasil.

Portugal também é um país europeu e europeísta, mas na Europa voa sem sair do lugar; a sua influência é diretamente proporcional à sua vulnerabilidade. É apenas no campo da lusofonia que Portugal tem conseguido consumar a sua identidade universal. O que significa que Portugal, para ser português, precisa acreditar que exerce algum tipo de influência sobre o Brasil, e que tem o seu respeito.

Mas isso não acontece. O Brasil é um país superlativo que nunca reconheceu em Portugal uma prioridade longeva. E sempre que o Brasil mostra mais frieza, Portugal contorce-se, retorce-se, desconforta-se e azia-se enquanto sob o tom para falar "nos laços de amizade que unem dois povos irmãos."

Bolsonaro, Temer e Dilma mostraram muita indiferença por Portugal. As passagens pelo país foram poucas e fugidias. Como reagiu o atual presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa? Fazendo seis visitas ao Brasil em seis anos, um recorde que viola códigos diplomáticos de reciprocidade.

Marcelo, como é carinhosamente tratado pelos portugueses, nasceu no berço do universalismo português. Na década de 1960, o seu pai, Baltazar Rebelo de Sousa, foi nomeado governador-geral de Moçambique. Após a revolução dos Cravos, refugiou-se no Brasil.

O avô de Marcelo, António Joaquim, viveu em Angola, depois de também ter trabalhado no Rio de Janeiro. Para o presidente português, as capitais da lusofonia, de Díli a Luanda ou a Maputo, não são capítulos da história portuguesa, mas páginas no álbum de família. O Brasil é um assunto de Estado, mas também é uma memória pessoal.

Nestas semanas consensualizou-se em Portugal a ideia de que a presença do presidente nas celebrações dos 200 anos da independência do Brasil é uma inevitabilidade histórica. As relações são entre Estados e não governantes e o Brasil não se pode esgotar na pessoa de Bolsonaro, um líder consensualmente desdenhado pelos portugueses.

Mas seria a presença de Marcelo inevitável?

O rei de Espanha participou dos 200 anos da independência da Colômbia (em 2010), do Chile (em 2010), da Argentina (em 2016) ou da Venezuela (em 2010-2011)? Não.

São inúmeros os exemplos em que chefes de estado de países com tradição colonial não participam deste tipo de cerimônias.

A presença de Marcelo no Brasil é um gesto retórico de um presidente que é particularmente sensível à importância de manter o Brasil dentro da esfera de influência. A sua sexta visita ao Brasil é mais importante para os portugueses do que para os brasileiros.

Mas está a relação entre Brasil e Portugal condenada a ser um rendilhado de insígnias, um permanente pretérito perfeito, um discurso panegírico?

À coluna, o ex-chanceler Celso Lafer (1992, 2001-2002) salienta que os dois países sempre conseguiram encontrar "convergências úteis", em torno de temas pontuais, principalmente quando há afinidade pessoal entre líderes luso-brasileiros.

FHC nutria muito apreço pelo premiê António Guterres e pelo presidente Jorge Sampaio, o que facilitou a intervenção de Portugal, na União Europeia, para que o Brasil não fosse prejudicado pelo surto da doença das "vacas loucas" em 2001-2002.

A boa relação entre Lula e o premiê José Sócrates ou entre os chanceleres Celso Amorim e Luis Amado e Celso Lafer e Jaime Gama são outros exemplos. Mas o Brasil é pragmático e transacional. É condescendente com a retórica universalista portuguesa apenas quando vê a possibilidade de extrair dividendos específicos.

E o futuro? Uma eventual vitória de Lula abrirá um campo de novas oportunidades. Se cumprido o programa eleitoral, a sua política externa será vigorosa. Enquanto Alckmin arrumará a casa interna a partir do Jaburu, Lula tentará arrumar o mundo a partir do Planalto.

Em declarações à coluna, o ex-ministro das relações exteriores de Portugal Luis Amado (2006-2011) reforçou que estamos atravessando uma "reconfiguração geopolítica de larga escala".

Enquanto o norte global obedece a uma lógica binária que opõe países democráticos a estados autocráticos, o sul global tem uma visão mais utilitarista e menos principiológica das relações internacionais.

Quando a expulsão da Rússia do Conselho de Direitos Humanos da ONU foi a votos, em abril, 82 países do sul puxaram o freio, incluindo a Indonésia, Índia, México e China.

Estes países têm mostrado uma posição neutral no conflito Ucrânia-Rússia. Estimativas de bancos e consultorias europeias indicam que, em 2030, 7 das 10 maiores economias do mundo serão do sul global, incluindo as duas primeiras (China e Índia). As declarações públicas de Lula estão alinhadas com este novo contexto, facilitando a sua ascensão como líder do sul global. Hoje o trono está vazio.

Há aqui uma oportunidade para Portugal forjar com o Brasil de Lula uma aliança de futuro, servindo como um dos países do norte global que é capaz de construir pontes com o sul.

Se atualmente os dois hemisférios são o contraponto um do outro e estão envoltos por um manto de animosidade, Portugal e o Brasil podem serem interlocutores estratégicos numa missão que extravasa a relação bilateral.

Dando a Portugal acesso a novos espaços de influência no sul, o Brasil ajudaria, agora com outros contornos, os portugueses a envigorarem a sua idealização universalista e a perceberem que o ideário da lusofonia também tem limitações.

A língua portuguesa é um poderoso instrumento de unificação entre países, mas também é uma divisa que aparta povos. Portugal e o Brasil podem ser maiores do que o seu idioma comum.

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