Rômulo Saraiva

Advogado especialista em Previdência Social, é professor, autor do livro Fraude nos Fundos de Pensão e mestre em Direito Previdenciário pela PUC-SP.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Rômulo Saraiva
Descrição de chapéu Previdência inss

Atestmed alimentará a indústria da fraude de atestados médicos?

Nova ferramenta para perícia levanta discussão sobre lisura dos processos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Com o avanço das novidades tecnológicas, as fraudes também acompanham essa metamorfose de inovação, inclusive na área previdenciária. Embora golpes primitivos, consistentes em imitar uma mera assinatura numa folha de papel, nunca tenham saído de moda, a chegada de facilidades do WhatsApp, Pix, QR code, aplicativos e inteligência artificial melhorou a criatividade delitiva dos estelionatários.

Nesse contexto, o Atestmed, ferramenta em que o Instituto Nacional do Seguro Social aposta suas fichas para diminuir a fila da perícia médica, também é pivô do risco de aumentar as fraudes em benefício por incapacidade.

O Atestmed é um serviço que pode ser usado pela plataforma digital Meu INSS. Permite ao segurado, do conforto da sua casa, anexar pelo celular ou pelo computador o atestado médico para dar entrada no requerimento de benefício por incapacidade. Pode ser apenas um atestado ou mais documentos. Nesse primeiro momento, não há necessidade de consulta presencial com o médico perito.

tela atestmed
Tela do serviço AtestMed - Divulgação/INSS

Como a concessão dependerá da análise de documento juntado remotamente, inicialmente não vai ter a entrevista ou anamnese pericial, exame físico e análise de exames complementares. Apesar de muitas perícias médicas do INSS serem extremamente velozes, em tese um atendimento presencial viabiliza mais chance de descobrir alguma irregularidade, como o segurado estar nervoso, gaguejando, deambulando corretamente etc.

Em dezembro, o Atestmed respondia por metade das concessões de benefício por incapacidade temporária. O INSS pretende que 100% de todos os benefícios sejam analisados sem ocupar a agenda do perito. Neste mês foi dado um passo decisivo com esse objetivo. No Ceará, começa um projeto piloto para usar a estrutura dos Correios que permitirá que os segurados solicitem o benefício apresentando o atestado médico ou odontológico nas agências dos Correios. Os funcionários dos Correios digitalizarão os atestados e toda documentação, auxiliando na abertura do requerimento via Atestmed mesmo sem qualquer agendamento. Em seguida, a ideia é que as agências dos Correios assumam essa responsabilidade em todo o país.

Enquanto o INSS se empenha nessa tecnologia para diminuir drasticamente a fila gigantesca de perícias, paradoxalmente a Associação Nacional dos Peritos Médicos Federais (ANMP) é contrária a isso e diz que o sistema "carece de mínimos mecanismos eficazes para a verificação da veracidade dos documentos apresentados".

Apesar de o Atestemed ser uma forma de atenuar o trabalho dos médicos, tendo em vista que eles estarão livres da primeira perícia em casos de benefício por incapacidade, a associação nacional, em nota, pondera que a plataforma permite fraudes na concessão de auxílio-doença e que a avaliação da saúde dos trabalhadores deve ocorrer de maneira adequada.

É claro que o Atestemed será mais um canal para fraudes. A fraude previdenciária vai ocorrer pela forma tradicional ou com o uso da tecnologia, seja por pessoas se apropriando de dados de médicos para forjar a emissão do documento, seja com os próprios médicos –privados ou peritos do INSS– sendo protagonistas do crime.

Pessoas aguardam atendimento em posto do INSS em São Paulo - Rubens Cavallari/Folhapress

Em Brasília, no início do ano, farmacêuticos foram investigados por vender atestados falsos e abortivos, com atendimento via chamada de WhatsApp. Quanto maior fosse o tempo de afastamento solicitado pelo comprador, o que aumenta a duração do benefício no INSS, mais caro era o laudo comercializado. Cada atestado podia valer entre R$ 50 e R$ 90.

Em São Paulo, em 2020, intermediadores e médicos peritos do INSS foram investigados por formar uma organização criminosa na agência da Previdência Social dirigida à concessão fraudulenta de benefícios previdenciários por incapacidade. A fraude investigada era realizada pelo próprio perito do INSS, que cobrava 30% dos valores atrasados a serem recebidos.

A falsificação e a venda de atestados médicos são antigos. Na década de 80, a ex-procuradora do INSS Jorgina de Freitas foi condenada por golpe previdenciário, inclusive envolvendo fraude em perícia médica de benefício por incapacidade. Não por outra razão, o crime de falsidade do atestado médico existe no Código Penal brasileiro desde 1940.

Portanto, a chegada de um novo instrumento tecnológico irá permitir a criação de fraudes com essa temática. Não há a menor dúvida sobre isso. Mas sem ela também existem há décadas fraudes antigas e recorrentes, como falsificar a assinatura de um médico.

Considerando que o Atesmed libera parte da força de trabalho dos médicos peritos, qual seria a verdadeira preocupação dos peritos médicos do INSS? Seria o cuidado altruísta com o prejuízo que o instituto poderia tomar com as novas fraudes? Ou seria a defesa indireta de uma reserva de mercado para deixar a categoria mais forte, na medida em que o INSS ficaria mais dependente de todos os serviços ofertados pelos médicos?

A nota pública da associação continua com as críticas sobre essa flexibilização. "É alarmante observar que, sob a liderança do sr. Alessandro Stefanuto, o INSS tem promovido ativamente essa facilitação, sem considerar as consequências a longo prazo para a integridade do sistema de seguridade social. A falta de perícia presencial permite brechas para que atestados médicos falsos ou duvidosos sejam utilizados para a obtenção indevida de benefícios. Além disso, a postura do INSS tem incentivado o surgimento de plataformas ilegais na internet, dedicadas à venda de atestados médicos falsificados ou graciosos."

Se o próprio INSS, que em princípio pode sofrer prejuízo com eventuais fraudes no Atestemed, não está preocupado com tal possibilidade a ponto de querer inviabilizar essa automação, soa esquisito os médicos nutrirem tamanho cuidado, principalmente se a ferramenta desafoga o trabalho deles.

Com ou sem Atestemed, as fraudes nos benefícios por incapacidade sempre irão existir. A fraude pode residir numa nova tecnologia, mas também em terceiros, que se passam por médicos, ou nos próprios médicos que façam parte da fraude. Parece inútil querer frear o avanço de uma nova tecnologia e de uma facilidade, apta a beneficiar milhares de pessoas num Brasil continental, apenas pelo risco de fraude.

Cabe ao INSS agora aperfeiçoar com rapidez a ferramenta e buscar formas, na própria tecnologia, para controlar melhor as fraudes, tecnológicas ou arcaicas.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.