Ronaldo Lemos

Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Ronaldo Lemos
Descrição de chapéu Folhajus tecnologia

Fé na tecnologia pode virar prisão

Inteligência artificial é software como qualquer outro; não se pode confiar nela sem questionamentos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Um amigo está reformando seu apartamento e me perguntou se deveria colocar "automação" nele. A ideia é permitir que funções como iluminação, ar-condicionado, som ambiente e outras possam ser controladas, por exemplo, por meio de um aplicativo de celular, e de qualquer lugar.

Na hora me lembrei de um encontro com Vint Cerf –um dos fundadores da internet– em 2012. Cerf dizia que vivemos em um mundo onde não dá mais para confiar em software. Ele comentou que quando via um elevador controlado por software, engolia em seco. Nas palavras dele: "temos bilhões de dispositivos interagindo entre si. É como se estivéssemos fazendo bilhões de experimentos com pedaços de software que nunca se encontraram antes". O aviso é que estamos jogando tudo na internet, sem pensar em cibersegurança ou nas consequências imprevisíveis disso.

Logo do ChatGPT, ferramente de IA generativa mais usada - Kirill Kudryavtsev/AFP

Para o meu amigo, eu disse que "automação" nas casas muitas vezes é feita com um nível precário de segurança. Agentes maliciosos podem interferir no funcionamento dos dispositivos. Os dados gerados podem acabar sendo monitorados, revelando a rotina da casa, quantas pessoas estão nela, se há visitantes, em quais dias e horários, por quanto tempo e assim por diante. Sem contar a alta probabilidade de que em cinco anos (ou menos) todo o equipamento estará obsoleto.

Mas há um outro caso trágico sobre a fé incondicional na tecnologia, ocorrido com os correios na Inglaterra. A empresa comprou um software para fazer a contabilidade unificada de suas 13 mil agências, a maioria operada por franqueados. Só que o software (chamado Horizon e fornecido pela Fujitsu) tinha falhas. Por exemplo, a tela algumas vezes congelava ao registrar um pagamento em dinheiro. O usuário instintivamente pressionava a tecla enter para ver se algo acontecia. Sem avisar, o software contabilizava cada aperto da tecla como um novo pagamento recebido, que nunca ocorreu.

Esse e outros erros acabaram levando a discrepâncias contábeis entre o caixa dos franqueados e a contabilidade centralizada dos correios. O resultado disso foi dramático. Os correios processaram seus franqueados acusando-os de fraude contábil. Ao todo, 900 pessoas foram condenadas por furto, estelionato e fraude. Várias delas cumpriram pena em regime fechado. Famílias foram destruídas, perderam suas casas e empregos. Foram necessários 16 anos para esclarecer tudo o que havia acontecido.

Os correios ingleses preferiram acreditar piamente no software em vez de ouvir centenas de pessoas. Só depois de uma ação coletiva proposta por 550 franqueados, organizada anos depois do início do problema, que a situação começou a ser revertida.

Em um momento em que estamos começando a entregar o controle das nossas vidas para as inteligências artificiais, o caso dos correios ingleses serve como um alerta. Inteligência artificial é software como qualquer outro. Vamos precisar trabalhar para não confiarmos nela sem maiores questionamentos. A fé incondicional na tecnologia pode ser, literalmente, uma prisão.


Já era – Apple como a empresa mais valiosa do planeta

Já é – Microsoft como a empresa mais valiosa do planeta

Já vem – Nvidia, hoje em 3º lugar, brigando pela posição da Apple e da Microsoft

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.