Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Descrição de chapéu The New York Times

Viajar de carro pelos EUA é fugir da claustrofobia online e das guerras culturais

Trajeto para o oeste do país pode trazer novas perspectivas sobre o local em que vivemos

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The New York Times

Escrevo estas palavras de manhã bem cedo num quarto escuro de motel, a quase 4.000 km de minha casa, oito horas a leste de Seattle e 45 minutos ao sul do Parque Nacional Glacier.

Cinco outras pessoas ao meu redor ainda dormem: minha esposa e nossos quatro filhos, todos amontoados em camas queen-size, um colchão inflável e um bercinho desmontável. São as condições em que estamos dormindo nos últimos 16 dias, que passamos desfrutando de um importante direito de nascença dos americanos: fazer a migração para o oeste de minivan, a grande travessia do país.

Em "A Caçada ao Outubro Vermelho", clássico do final da Guerra Fria, um dos soviéticos desertores do submarino, representado por Sam Neill, tece fantasias sobre seu futuro como americano livre –vivendo em Montana com uma picape ou "possivelmente até um ‘veículo recreativo’", dirigindo "de estado a estado", "sem documentos". Perto do final do filme, o personagem morre, sussurrando "queria ter visto Montana".

Manada de bisões no vale de Lamar, no Parque Nacional de Yellowstone, no estado americano de Wyoming
Manada de bisões no vale de Lamar, no Parque Nacional de Yellowstone, no estado americano de Wyoming - Jim Urquhart - 20.jun.11/Reuters

Seja quais forem os defeitos da educação que damos aos nossos filhos, eles agora pelo menos já viram Montana –e, antes disso, Wyoming, Minnesota e assim por diante, retroativamente pelo Meio-Oeste, até a terra distante de hobbits que habitamos, Connecticut. Quando você ler este texto, supondo que eu não tenha sido recrutado para integrar algum grupo sobrevivencialista em algum ponto ao norte de Coeur d’Alene, em Idaho, eles já terão visto Idaho e o estado de Washington, também.

Mais especificamente, eles conheceram o zoológico de Pittsburgh e a cúpula dourada da Universidade Notre Dame, em Indiana (numa parada de 15 minutos para esticar as pernas), olharam para Chicago desde o alto de um arranha-céu e molharam os pés no lago Michigan.

Passaram horas num parque aquático em Minnesota, caminharam pela pradaria onde Laura Ingalls Wilder viveu nos livros posteriores da série "Little House", viram o monte Rushmore e o memorial a Crazy Horse, passaram calor no Parque Nacional Badlands e evitaram ser atingidos por raios perto do monte Devil’s Tower, tomaram banho em fontes de água quente e procuraram ossos de dinossauros em Thermopolis, no Wyoming, observaram gêiseres e ursos-pardos em Yellowstone e um castor despreocupado no Parque Nacional Glacier e olharam com espanto para os preços de casas em Bozeman, em Montana.

Ok, na realidade essa última coisa quem fez foram os pais delas; as crianças estavam entretidas com seus hambúrgueres caros demais, enquanto nós dois contemplávamos a onda de recém-chegados endinheirados a "Boz Angeles". Como bom jornalista, venho tentando juntar material para colunas enquanto faço essa viagem, e questões de migração, densidade demográfica e desenvolvimento assomam com destaque quando você atravessa o (provavelmente) subpovoado Oeste –com destaque tão grande ao outdoor que saúda quem chega a Cody, no Wyoming, pedindo "não 'californiem' nossa Cody".

Mas para esta coluna, com nossa viagem ainda inacabada, quero arriscar duas observações gerais sobre a América em grande escala. Talvez sejam observações banais, mas vou correr esse risco.

A primeira é meu senso de surpresa e deslumbramento com a quantidade de coisas belas para ver e assistir nas estradas do Oeste, sem precisar encarar aglomerações de turistas. Já li todas as reportagens sobre o crescimento do turismo americano e o superlotamento dos parques nacionais, mas o único gargalo real que encontramos foi no Parque Nacional Glacier, onde as estradas de altitude maior estavam fechadas pela neve e todo mundo foi obrigado a percorrer as mesmas poucas trilhas.

E cada lugar por onde passamos que era um grau menos famoso que os grandes parques nacionais —lugares como o maravilhoso Parque Estadual Custer, em Dakota, ou as fontes termais de Thermopolis— estava espantosamente vazio. Não devia haver mais de 20 pessoas sob a sombra selvagem e impossível do Devil’s Tower na tarde em que escalamos a montanha.

É claro que disponível não significa perfeitamente acessível: mesmo nos enfiando todos dentro de um mesmo quarto de motel, já gastamos um bom dinheiro só com gasolina, e dia após dia de trajetos de várias horas de carro passados tentando ensinar às crianças sobre os presidentes americanos (desistimos depois de Lincoln, previsivelmente), além de perceber que nosso filho de 2 anos conhece alguns dos trechos inapropriados de "Hamilton", não é uma experiência que seria do agrado de todos.

Mas, se você está acostumado aos espaços superlotados nos litorais, deve saber que eles realmente desaparecem –e não se convertem apenas em extensos plantações de milho, áreas de pastagem ou deserto, mas em uma paisagem repleta de lugares que foram feitas para viajantes, que oferecem recompensas imediatas mesmo para o visitante mais casual.

Isso está ligado à segunda observação, que é simplesmente a diferença intensa entre a América vivenciada como entidade geográfica, um império continental, e a América vivenciada como uma paisagem virtual, por meio das telas e dos apps por meio dos quais, cada vez mais, nos encontramos.

A comparação não é positiva para a América virtual, que parece superlotada e exaustiva –mais de mil pessoas gritando umas com as outras num salão de baile de hotel de tamanho médio.

Não quero dizer que atravessar a América física expõe a versão online como sendo "irreal", porque a vida online é bastante real à sua própria maneira e porque nossos parques nacionais e atrações de beira de estrada não são os lugares onde a maioria dos americanos vive sua vida diária.

Mas a amplitude deste país, de estado a estado, com sua complexidade, diversidade e simples estado natural selvagem, ainda parece uma qualidade potencial a ser contraposta à claustrofobia da política das telinhas e das guerras culturais –uma válvula de escape que não está ao alcance de todas as sociedades divididas, um meio de fuga e reinvenção que a internet restringe, mas ainda não eliminou.

Ver a América dá esperança na América. E, agora, se me dão licença, tenho oito horas pela frente numa minivan lotada.

Tradução de Clara Allain

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