Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Descrição de chapéu The New York Times

Por que 'Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo' provavelmente ganhará o Oscar

Filme adiciona peso moral e apostas humanas à ideia de multiverso, onipresente na cultura pop contemporânea

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O favorito para ganhar o Oscar de melhor filme neste fim de semana não é o melhor ou mesmo o segundo melhor filme entre os indicados —esses seriam "Tár" e "Top Gun: Maverick", respectivamente–, mas sim um filme que um número notável de pessoas simplesmente amou com paixão: "Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo".

Alguns filmes têm fãs; esse tem missionários. E para aqueles que não se apaixonaram, como eu, a pura paixão pode parecer um pouco misteriosa. O surgimento de haters online, agora que parece provável que ganhe a estatueta de ouro, é mais inevitável.

Michelle Yeoh em cena do filme 'Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo' - Divulgação

Não é difícil identificar o que as pessoas gostaram nele. O filme tem algumas atuações adoráveis, especialmente a de Ke Huy Quan, que ficou famoso como ator infantil nos anos 1980 por "Os Goonies" e "Indiana Jones e o Templo da Perdição" e agora ressurge na tela como um adulto de meia-idade. Ele tem uma mistura de estilos não encontrada em muitos outros filmes –palhaçadas e piadas grosseiras num momento, drama familiar terno no próximo, violência coreografada no seguinte.

Não é exatamente um filme de super-herói, mas tem uma certa energia de filme de super-herói –um meio-termo feliz para um público treinado a esperar convenções do gênero, mas que deseja algo mais adulto.

Mas o fervor que "Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo" inspira é mais profundo que o mero prazer. Suspeito que esteja ligado às ambições filosóficas do filme, sua tentativa de adicionar algum peso moral e apostas humanas a um dos conceitos mais curiosos de nosso tempo: a ideia do multiverso.

(Seguem alguns spoilers.)

A protagonista do filme, Evelyn, interpretada por Michelle Yeoh, é uma empresária imigrante trabalhadora que luta com um casamento fracassado, seus impostos e sua filha. Mas acontece que ela também é apenas uma versão de si mesma, uma versão particularmente frustrada dentro de uma vasta gama de universos e linhas do tempo.

Suas decepções e sua incapacidade de viver de acordo com seu potencial fazem dela a pessoa perfeita para salvar todos os universos (ou todo o multiverso com as suas várias Evelyns) de um supervilão destruidor de mundos que experimentou de forma total o multiverso e saiu da experiência com um terrível desespero existencial –e que também é uma versão da filha de Evelyn que vem de um universo diferente.

O que é notável sobre esse enredo é a maneira como ele tenta preencher a lacuna entre os dois usos diferentes do multiverso na cultura contemporânea –cuja coemergência, nos domínios da cultura de massa e da alta teoria científica, não parece coincidência.

O primeiro uso é leve: o multiverso como solução para os produtores de franquias famosas da cultura pop que tentam lidar com as histórias canônicas de seus personagens ao mesmo tempo em que buscam criar algo novo.

Uma linha do tempo infinitamente ramificada, em que todas as versões possíveis do Super-Homem ou do Homem-Aranha poderiam ter histórias esperando para ser contadas (e cruzamentos a serem traçados), foi a saída que escritores de quadrinhos encontraram décadas atrás para sair desse impasse. Agora, a solução foi adotada por filmes da Marvel e afins, mas levando-se ainda mais a sério.

O segundo uso é o científico-filosófico: o multiverso como tentativa de resolução de certos mistérios da física quântica e também (e talvez mais importante) de explicar por que nosso próprio universo parece tão excepcionalmente adequado para a vida consciente, tão sutilmente sintonizado com as leis e propriedades que permitem nossa existência.

Portanto, o multiverso existe ao mesmo tempo como uma vívida presunção da cultura pop e como uma espécie de conselho científico-filosófico de desespero –empurrando Deus ou o propósito para cima e para longe, enquanto impõe limites difíceis de superar à compreensão científica.

E enquanto os filmes da Marvel tentam trazer os aspectos científicos como acessórios aqui e ali (uma personagem de "Doutor Estranho no Multiverso da Loucura" se apresenta como especialista em "pesquisa multiversal"), "Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo" chega muito mais perto de captar essa dualidade peculiar.

Por um lado, você se diverte imaginando múltiplas identidades e linhas do tempo ao mesmo tempo em que a Evelyn original, taciturna, encontra diferentes versões de si mesma –a cientista inovadora, a chef brilhante, a atriz famosa, a lutadora de kung fu– e diferentes versões de realidade. Em uma linha do tempo pateta, todos têm os dedos substituídos por salsichas molengas.

Mas também há o desespero da filha dela, em sua encarnação de supervilã, com a aparente insensatez em relação a isso tudo –afinal, se todos os cenários possíveis encarnaram em algum lugar, nenhuma escolha específica tem peso, nenhuma versão específica de você é mais concreta do que qualquer outra, o bem não tem vantagem sobre o mal, e o desespero é mais racional que a ambição, a esperança ou o amor.

O que mais me decepcionou no filme é a maneira capenga como ele responde a esse dilema, fazendo com que a supervilã seja retirada do niilismo absoluto pelo amor de sua mãe sem que ela solucione a sensação de insensatez e futilidade que motiva (compreensivelmente!) seu desespero.

Algo no longa remete à estrofe final do poema "Dover Beach", de Matthew Arnold, que apresenta a ideia de que "sejamos verdadeiros/ um para o outro!" é a única resposta para um mundo cuja variedade e interesse superficiais acabam por ceder ao desespero –uma resposta insuficiente antes e agora, a descrição de um impasse, e não uma solução real.

Mas o próprio impasse, a sensação de variedade infinita que leva apenas à repetição e ao pessimismo, pode ser parte do motivo pelo qual o multiverso se ajusta particularmente bem ao nosso momento.

No melhor ensaio até hoje sobre o multiverso como fenômeno cultural, Spencer Klavan faz uma analogia com antecedentes da Antiguidade —as especulações de muitos mundos de Epicuro e Lucrécio como análogas à hipótese contemporânea de muitos universos, as recontagens e compilações de histórias mitológicas como semelhantes às narrativas de deuses e super-heróis da Marvel e da DC Comics.

Então, como agora, argumenta Klavan, tanto as tendências artísticas quanto as científico-filosóficas incorporavam uma sensação de futilidade e fragmentação, de poderes humanos atingindo seus limites na política, na ciência e nas artes ao mesmo tempo.

As velhas histórias, seja de Helena de Troia ou Kal-El de Krypton, recomeçam infinitamente porque nenhuma nova história pode ser imaginada, então "tanto o público quanto os artistas olham para trás, para as lendas favoritas de uma era de ouro passada", diz Klavan. O cosmos é reimaginado como infinito, mundos sobre mundos e universos sobre universos, por sociedades que lutam para encontrar significado final no particular e específico, no eu singular e suas opções, neste mundo e em sua história.

E talvez seja apropriado se a Academia –que já ilustrou os caminhos bifurcados do multiverso no ano em que anunciou erroneamente primeiro "La Land" e depois "Moonlight" como vencedor de melhor filme– recompensar uma personificação artística dessa visão, em vez do progresso celeste de Maverick ou o purgatório inacabado de Lydia Tár.

Esses são filmes de jornada, arcos narrativos tradicionais com altos riscos ligados a cada escolha pessoal, cada gesto artístico e manobra de caça a jato. "Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo" é um filme para uma sociedade muito mais insegura sobre o significado fundamental de suas histórias e o real significado das opções humanas –e presa na esperança de que um sentimento que desafia nossa razão, uma vibração de esperança e amor, seja suficiente para nos manter longe do abismo.

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