Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Ross Douthat
Descrição de chapéu The New York Times

'Yellowjackets' lembra que todo ensino médio é um pouco como um acidente de avião

Série americana é viagem de nostalgia da década de 1990 e mostra versão intensificada da selvageria adolescente

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The New York Times

Acredito sem ironia na nostalgia dos anos 1990. Acho que a paisagem cultural da minha juventude era melhor que a de hoje —objetivamente melhor, e não apenas vista através dos óculos cor-de-rosa da meia-idade. Aceito (com certas notas de rodapé ideológicas) a teoria do iPhone sobre a atual infelicidade adolescente. Eu apoio o ensaio de Freddie deBoer sobre a maioridade antes da internet.

Mas mesmo a nostalgia justificada precisa de realismo sobre o que está lembrando. Por exemplo, ao defender os anos 1990 contra a era atual, você pode ter uma tese sólida de que é mais pró-social, corporificado e relaxante assistir a TV lixo com seus amigos no porão de alguém do que sentar em sua cama mandando mensagens de texto com um monte de avatares.

Mas ainda é importante reconhecer que se via muito lixo na TV antigamente e que os adolescentes pré-internet eram mais propensos a assistir a "Se Brincar o Bicho Morde" ou "Conta Comigo" do que a jogar bola ou passear pelas ruas e pelos bosques em busca do drama da maioridade.

Grupo de estudantes em meio a floresta escura
Cena da segunda temporada de Yellowjackets - Kailey Schwerman/Showtime

De alguma maneira, o ensino médio de 20 anos atrás era menos estressante que o de hoje? Acho que sim. O ensino médio como uma experiência total já foi realmente tranquilo, em oposição a uma zona de hierarquia muitas vezes implacável, onde meio-adultos viciados em hormônios dilaceram e ferem uns aos outros enquanto competem pelo domínio? Lembro-me da resposta: antes da internet era diferente, mas não era tranquilo.

De fato, dependendo de como define "tranquilo", você pode argumentar de outra maneira, já que, em certos sentidos, o mundo criado pela internet tornou o ensino médio mais seguro do que era na minha juventude, separando as crianças umas das outras mais do que no passado, criando menos oportunidades de caos físico e estupidez não virtual. O problema dessa separação, com a retirada adolescente para o virtual, é que ela parece entorpecente, desanimadora, alienante, levando as crianças à ansiedade e à depressão. Mas a forma anterior de vida adolescente era fisicamente mais precária —mais álcool e carros, mais sexo real com corpos reais, mais gravidez, mais violência.

Essa realidade é a força dramática motriz de "Yellowjackets", da Showtime, cuja primeira temporada acabei de acompanhar e cuja segunda está em andamento. O programa é uma viagem literal de nostalgia do ensino médio, indo e voltando entre um enredo contemporâneo e uma narrativa adolescente da década de 1990, trilha sonora com a música daquela época anterior e cheia (como em "Fleishman Is in Trouble") de atores icônicos da era Clinton, como Christina Ricci e Juliette Lewis, interpretando personagens adolescentes na meia-idade. E é tudo sobre a ideia do ensino médio como uma zona de fisicalidade implacável, violência traumática e perigo hipercorporificado, a um ponto de horror que eu não recomendaria a todos —efeito que alcança ao contar a história de um time de futebol de garotas cujo avião cai no deserto canadense e elas têm que sobreviver ao inverno sem resgate ou socorro.

A comparação óbvia é com "O Senhor das Moscas", mas o romance de William Golding é sobre meninos regredindo da civilização ao primitivo, enquanto "Yellowjackets" é sobre garotas adolescentes representando uma versão intensificada da selvageria adolescente que a civilização não subjuga totalmente. O poder da série vem da forma como as coisas familiares da adolescência —a influência do álcool ou de cogumelos, o espectro de uma gravidez na adolescência, a repulsa à puberdade e à transformação física, a dureza das hierarquias sociais adolescentes e os choques quando elas desmoronam, os profundos ressentimentos dos nerds ainda não totalmente capacitados— tornam-se mais vívidas e reconhecíveis em circunstâncias extremas.

Mesmo os elementos mais intensos, as terríveis consequências do acidente e o canibalismo que claramente aguarda os personagens, são literalizações de um aspecto selvagem e carnal da adolescência que nem mesmo um subúrbio americano insípido consegue domar.

Para uma única temporada de televisão ou uma série limitada, é material suficiente: a primeira temporada de "Yellowjackets" não fecha seus círculos ou completa sua história, mas quase vale por si só. A intenção do programa, no entanto, é combinar sua terrível ação adolescente com o outro tipo de história que sua narrativa de acidente de avião evoca —o misterioso melodrama da ilha de "Lost", com todas as suas caixas misteriosas e sua mitologia. E assim, entrelaçados ao longo da ação de adolescentes sendo adolescentes, há linhas de sobrenaturalismo, enigmas codificados, significantes estranhos, migalhas de pão para o espectador ansioso.

Eu gosto dessas coisas, mas espero que elas afinal levem a um fracasso dramático. Meu ódio particular pelo final de "Lost" nunca morrerá, mas com o tempo e a distância posso ver que seu fracasso foi característico do gênero mais amplo da televisão baseada na mitologia. Esse é um estilo que funciona muito bem com as séries de TV, em que a exibição semana a semana permite uma narrativa que se desenrola lentamente e a fixação obsessiva dos fãs em pistas e enganos. Mas as recompensas por multiplicar os mistérios são maiores do que as recompensas por descobrir como resolvê-los. Então, em quase todos os casos, você obtém uma promessa excessiva, um compromisso excessivo e, em seguida, uma decepção esmagadora.

O maior exemplo desse problema não foi "Lost", mas "Arquivo X", que lidou com sua trama emaranhada de conspiração de uma forma tão dolorosamente malsucedida que ninguém realmente se lembra de nenhuma das temporadas posteriores. Com "Lost", o fracasso foi mais abrupto e irritante, com muitos espectadores acreditando em um plano mestre até o fim e então percebendo que a maioria das pontas soltas havia sido deliberadamente abandonada.

Provavelmente, na longa lista de programas que não assisti, há um estudo de caso mais bem-sucedido. Mas a regra é o fracasso.

Minha esperança em "Yellowjackets" é que seu mundo de acidente aéreo seja construído para ser mais independente do que a expansão de "Lost" —uma única força sobrenatural, um único culto, um elenco limitado, menos estátuas estranhas de quatro dedos pedindo explicação.

Meu temor, porém, é que as opções feitas na primeira temporada —particularmente a morte de dois personagens-chave na linha do tempo dos anos 1990, mortes que foram dramaticamente eficazes, mas reduziram substancialmente as possibilidades narrativas não sobrenaturais— levem a história cada vez mais fundo em seus mitos e para mais longe de sua visão original: que toda experiência do ensino médio é um pouco como um acidente de avião.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

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