Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Descrição de chapéu The New York Times

'Casa do Dragão' e 'Anéis de Poder' mostram que entramos na era da TV faraônica

Ensopado de George R.R. Martin precisa de uma pitada a mais de Tolkien e vice-versa

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Ross Douthat
The New York Times

Como a história da Terra-Média de J.R.R. Tolkien, os últimos 25 anos de televisão americana podem ser divididos em várias eras. Primeiro houve a era da TV de prestígio, dominada por autores e anti-heróis, releituras de gêneros cinematográficos clássicos no estilo dos anos 1970, obras sobre narrativas dickensianas feitas para induzir à reflexão e horas marcadas com a HBO nas noites de domingo.

Ela foi sucedida pela era da TV ao máximo, em que plataformas de streaming proliferaram e competiam para produzir o máximo possível de conteúdos, numa produção constante e repetitiva dominada por imitações B+ dos maiores sucessos da era da TV de prestígio.

Mais recentemente estamos ingressando numa terceira era, a era da televisão faraônica. Os serviços de streaming estão enxugando e agrupando produções.

O autor George R.R. Martin em seu escritório em Santa Fe - Kalen Goodluck - 12.ago.22/The New York Times

Todos estão procurando o equivalente na telinha às grandes produções de cinema que sustentavam os estúdios no verão americano –uma produção cara, feita para grandes plateias e que vai gerar assinaturas para suas plataformas. Isso pode significar spinoffs de franquias cinematográficas já existentes, como as produções da Marvel e "Star Wars" na Disney+.

Pode ser uma fantasia histórica que agrade ao grande público, como "Bridgerton", romance multirracial com toques de sensualidade, da Netflix. Ou experimentos com épicos de ficção científica ou fantasia até agora vistos como impossíveis de filmar, como "Fundação", de Isaac Asimov, e "A Roda do Tempo", de Robert Jordan.

Agora temos dois experimentos suficientemente grandiosos para moldar a trajetória da era inteira: os lançamentos quase simultâneos de "A Casa do Dragão", da HBO, a prequela de "Game of Thrones", e "O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder", aposta da Amazon para monetizar a história e mitologia da Terra-Média.

Centenas de milhões de dólares foram gastos com essas produções —muito mais pela Amazon que pela HBO—, e o sucesso delas pode inserir a fantasia no território cultural ocupado pelos filmes de super-heróis, o gênero que hoje domina os gastos e as bilheterias de Hollywood.

Como uma pessoa que lê obras de fantasia desde sempre, estou ambíguo em relação a essa perspectiva. Por um lado, qualquer alternativa cultural à tirania sufocante dos supersseres vestidos de lycra parece algo que merece ser saudado, e a fantasia, em todas suas variações, oferece possibilidades narrativas muito mais ricas que a DC e a Marvel (não vou defender essa afirmação –ela é autoevidente), especialmente num mundo em que as plataformas de televisão se dispõem a estender suas narrativas custosas por cinco, dez ou 20 horas.

Por outro lado, o único caso plenamente bem-sucedido que tivemos até agora de narrativa de fantasia feita com grande orçamento é a pioneira trilogia "Senhor dos Anéis", de Peter Jackson, que estreou mais de 20 anos atrás. "Game of Thrones", da HBO, foi uma proeza impressionante por seis temporadas, apesar de ter sido prejudicada pelo tratamento pornográfico que deu à violência e ao sexo, mas sua conclusão foi um fracasso épico.

Outras produções de fantasia, mesmo quando tiveram sucesso comercial, tenderam a ser ou mediocridades insípidas (como "A Roda do Tempo", da Amazon) ou catástrofes inchadas (como os filmes "Hobbit" de Peter Jackson). E, por mais compreensível que seja o cálculo comercial, o fato de alguns dos maiores orçamentos terem sido reservados a spinoffs de Tolkien e George R.R. Martin sugere um futuro em que os filmes de fantasia sucumbam à decadência e repetição, sem realmente alcançarem a grandeza antes disso.

Assim, muita coisa vai depender de "A Casa do Dragão" e "O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder" mostrarem qualidade condizente com seus custos. Já assisti aos primeiros seis episódios do primeiro e aos primeiros dois do segundo, e a resposta até agora é que ambos revelam algo dessa qualidade, sim —mas de uma maneira que, infelizmente, é dividida de tal modo que cada um expressa algumas das virtudes do gênero mas não é complementado pelos pontos fortes do outro.

Como regra geral, as grandes obras de fantasia oferecem uma conjunção de dois modos narrativos: o mítico e metafísico, por um lado, e o político e histórico, do outro. Em um nível, o choque entre bem e mal, deuses e heróis, o declínio ou o retorno da magia, o espectro do apocalipse. Em outro nível, à sombra dos conflitos maiores, as lutas e os percalços de reis, princesas e gente comum sendo travadas e sofridos com todas as confusões e os tons de cinza humanos usuais.

A Terra-Média de Tolkien e a Westeros de George Martin costumam ser descritas como exemplos nitidamente distintos de construção de mundos de fantasia. O primeiro é o épico heroico mais tradicional, marcado pela devoção e os ideais da cavalaria medieval. O segundo é um retrato mais violento e realista (ou, conforme sua visão, mais vulgar e niilista) de uma sociedade pré-moderna.

Embora as diferenças sejam evidentes, as sagas das duas fantasias se assemelham mais do que a caricatura sugere, e ambas trazem versões da narrativa em dois níveis que acabo de descrever.

"O Senhor dos Anéis" é altivo e assexuado, sem dúvida, mas não lhe faltam personagens em tons diversos de cinza, assim como não faltam detalhes dinásticos nem intrigas políticas. Muitas de suas figuras imperfeitas e falíveis —desde Boromir e seu pai, Denethor, até Grima Língua de Serpente e seu traiçoeiro mestre, Saruman— se encaixariam sem dificuldade nas paisagens de Westeros.

O mesmo poderia ocorrer com personagens admiráveis, mas ainda complexos, como a donzela escudeira Eowyn. Tolkien ao mesmo tempo celebra e enfraquece a hierarquia; seus heróis mais importantes são um homem que nasceu para ser rei e um criado de baixo status, vindo de um lugar insignificante. E o próprio drama do "Anel" é um retrato fortemente moderno do vício e da corrupção; há mais realismo psicológico intransigente no arco narrativo de Smeagol/Gollum que em qualquer personagem de George Martin.

Enquanto isso, os romances de Martin, não obstante seu espírito de desmistificação e suas cenas de sexo, ainda dependem –pelo menos em sua forma inacabada, devo dizer— das convenções tradicionais de bem versus mal, conflito metafísico e perigo apocalíptico. Os Stark de Winterfell revelam mais falhas de liderança e julgamento que Aragorn, filho de Arathorn, mas ainda são reconhecivelmente heroicos quando comparados à maioria de seus antagonistas políticos.

Os Lannister, os grandes rivais dos Stark, têm suas complexidades e suas chances de redenção, mas Cersei Lannister e seu filho Joffrey são vilões mais perversos que a maioria dos personagens humanos de Tolkien. Quando Daenerys Targaryen liberta os escravos de Essos, as consequências são confusas, mas o ato em si é claramente magnânimo. Quando os Caminhantes Brancos ameaçam mergulhar o mundo numa noite invernal sem fim, a ameaça é sauronesca, não é moralmente ambígua de alguma maneira.

Mas na nova spinoff para a TV, até agora, a divergência entre Tolkien e Martin parece muito mais marcante. "A Casa do Dragão" é ambientada num passado de Westeros com mais dragões, mas sem ameaça de apocalipse mágico, e suas tramas iniciais são quase todas sobre política e intrigas da corte —Targaryen contra Targaryen, desta vez, não Stark contra Lannister, e nenhuma das facções inspira qualquer empatia moral especial de nossa parte.

As intrigas são traçadas com habilidade, as atuações são fortes e o mundo tem um ambiente de algo vivido que não é visto em muitas produções de fantasia. Mas a história tem um problema que pode ser descrito como "e daí?": é toda feita de Maquiavéis contra outros Maquiavéis, sem outsider com a qual o espectador possa se identificar e sem trunfos morais inequívocos em jogo. Sob esse aspecto, a nova série está mais próxima de ser uma caricatura da anterior: tem uma abundância de dragões, nudez e realpolitik cínica e uma escassez de enquadramentos morais e metafísicos. Com isso, as intrigas correm o risco de virar entediantes e a violência, de não passar de espetáculo vazio.

Já "A Casa do Dragão" tem o desafio oposto. Recuando no tempo no universo legendário de Tolkien, a série é ambientada em um tempo que é muito mais mágico e mítico que o mundo de "A Sociedade do Anel" e "As Duas Torres". Os episódios iniciais primam pela pintura sobre essa tela; diferentemente do que ocorre com algumas produções extravagantes à base de imagens geradas por computador, dá para ver onde todo o dinheiro foi investido. Mas a beleza visual dos reinos dos elfos e dos anões necessita do contraste dos feitos mortais, pessoais e políticos, para humanizar o mito, e a nova série ainda não encontrou esse embasamento.

Assim, o que cada uma das duas séries precisa é um pouco mais do que a outra tem em abundância. O ensopado de Martin precisa de uma pitada a mais de Tolkien e vice-versa.

Há talentos suficientes envolvidos nas duas produções para torná-las interessantes, mesmo que elas não consigam realizar a síntese que estou sugerindo. Mas, considerando que elas estão dando o tom e a direção de toda uma era da televisão, "interessante" é muito pouco. Queremos que elas realizem o potencial pleno de seu gênero, construindo criações que, em suas alturas, suas profundezas e sua importância humana, sejam sentidas como tão completas e intencionais quanto a nossa.

Tradução de Clara Allain

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