Samuel Pessôa

Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP.

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Samuel Pessôa

Um herói americano

O evangelizador convertido ao ateísmo daria um belo filme de Clint Eastwood

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Gosto do herói americano: os personagens de western, os grandes inventores —desde Thomas Edison até Steve Jobs—, Christopher McCandless, cuja história foi retratada no filme de Sean Penn “Na Natureza Selvagem”, entre outros.

É a fábula do homem isolado que cria uma vida original para si. Em geral, envolve excelência em alguma área, como os orientais, associada à independência.

Completa esse tipo ideal weberiano profundo sentimento de responsabilização: vive conscientemente e até o fim as consequências de suas escolhas.

Em 1977, Daniel Everett desembarcou às margens do rio Maici, afluente do Madeira, a quatro dias de barco de Porto Velho, com o intuito de evangelizar os índios pirahãs. Acompanham-no esposa e três filhos pequenos.

Índios Pirahã às margens da rodovia Transamazônica próximo a Humaitá (AM) - Lalo de Almeida-22.out.2016/Folhapress

Dotados de uma cultura material muito simples, e falando língua absolutamente desconectada de todas demais —seria o basco da Amazônia—, o povo pirahã é imune à palavra de Deus.

Língua simples em algumas dimensões —tem somente oito consoantes e três vogais—, não tem o conceito de número nem nomes para cores. Os verbos não são conjugados no passado e futuro.

Por ter poucos fonemas, as palavras são longas e a língua é tonal, como o chinês: pequenas mudanças na entonação da vogal alteram o significado.

Vivem no momento presente e são muito precisos ao falar. A língua requer que, ao descrever algo, empregue-se complemento ao verbo esclarecendo se o falante viu, ouviu falar ou deduziu a informação transmitida.

Não há conjunções, pronomes relativos ou outros conectores na língua. A frase “Mamãe em dia de chuva foi à feira e voltou molhada” em pirahã seria: “Chove. Mamãe vai à feira. Mamãe volta molhada”.

Aparentemente, a língua pirahã é não recursiva, o que questiona a teoria de Noam Chomsky de haver uma base genética universal na formação das línguas.

Everett e sua família viveram oito anos continuamente entre os pirahã. Por mais de 30 anos, voltou frequentemente para visitá-los, às vezes por longas temporadas.

Conseguiu desvendar os mistérios da língua e gravou o Novo Testamento em pirahã. De quebra, fez mestrado e doutorado em linguística na Unicamp. Fala um português elegante, fluente e com pouco sotaque.

Os pirahãs somente conversam sobre fatos presentes e passados se estes foram diretamente observados por alguém próximo. Não têm mito fundador. A pergunta “quem criou o Universo?” não faz o menor sentido para eles.

Everett levou a palavra de Deus a um povo feliz, que não teme a morte e que vive um dia de cada vez. Deu-se o inverso do que pretendia o pregador.


O longo convívio com os pirahãs minou a sua crença. Quando souberam que o “Grande pai”, que era como Everett traduziu Jesus para pirahã, não tinha sido visto por ninguém próximo e teria vivido em um passado distante, eles se desinteressaram pela história.

O evangelizador acabou convertido ao ateísmo. Um longo processo de aceitação de suas dúvidas culminou, como ele já suspeitava, no fim de um casamento de 30 anos. Dois filhos ficaram alguns anos sem falar com ele.

Hoje é linguista acadêmico dos mais respeitados. Não se sabe como terminará o debate entre sua teoria cultural de formação da linguagem e a de Noam Chomsky.

Mas estou certo de que Clint Eastwood tem material de sobra para um belo filme.

O conteúdo da coluna está no comovente livro “Don’t Sleep, There are Snakes” —mistura de autobiografia, etnografia e linguística— de nosso herói, surpreendentemente não traduzido para o português.

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