Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

A independência que falta fazer

Para muitos brasileiros, falamos uma língua que ainda não nos pertence

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"Nesse monstrengo político existe uma língua oficial emprestada e que não representa nem a psicologia, nem as tendências, nem a índole, nem as necessidades, nem os ideais do simulacro de povo que se chama o povo brasileiro. Essa língua oficial se chama língua portuguesa e vem feitinha de cinco em cinco anos dos legisladores lusitanos."

O parágrafo acima foi escrito há quase cem anos por Mário de Andrade (1893-1945) para tratar de uma realidade que, na essência, pouco mudou. Uma parcela enorme dos brasileiros acha que aqui falamos – errado, claro– uma língua que não nos pertence. Como explicar esse delírio coletivo?

Se Bolsonaro, com seu famoso toque de Midas ao contrário, não tivesse transformado o bicentenário da Independência em matéria fecal, um dos temas que deveríamos estar discutindo agora seria o da nossa persistente dependência linguística.

Convidados visitam o salão onde está a tela "Independência ou Morte", de Pedro Américo, no Museu do Ipiranga, em São Paulo - Eduardo Knapp/Folhapress

Não se trata de uma dependência formal. Insidiosa, ela se manifesta por exemplo em salas de aula toda vez que uma criança leva cascudos ao escrever numa redação sobre as férias: "Me diverti muito". Se divertiu, não: divertiu-se! Logo lhe ensinam que pronome oblíquo átono em início de frase é crime.

Crime hediondo, aliás, visto não prescrever nunca. De nada adiantou o poeta barroco Gregório de Matos (1636-1696) ter tido o topete de escrever um verso como este quando ainda éramos colônia: "Vos dou os parabéns".

No século 19, grito do Ipiranga já gritado, a inclinação pelo pronome proclítico abrindo frase se confirmava na fala de personagens de José de Alencar, que escreveu: "Nós, os escritores nacionais, se quisermos ser entendidos de nosso povo, havemos de falar-lhe em sua língua, com os termos ou locuções que ele entende, e que lhes traduz os usos e sentimentos".

Às vezes o Brasil é meio lento. Se liga: língua é o que as pessoas falam e escrevem, postulado básico do qual decorre que gramáticos e demais sábios devem ir atrás dela e não o contrário.

Do modernismo em diante, o pronomezinho abre-alas que ajuda a fazer um país (um exemplo entre tantos de brasileirice desprezada) virou arroz de festa na literatura nacional. Mas, ah, não em cartilhas, gramáticas, manuais! O que os portugueses iriam pensar de nós?

Aqui eu devolvo a palavra a Mário: "Não se trata de reação contra Portugal. Trata-se duma independência natural, sem reivindicações, sem nacionalismos, sem antagonismos, simplesmente, inconscientemente. Não se trata de reagir. Trata-se de agir, que é muito mais viril e mais nobre. Se trata de ‘ser’. O brasileiro tem o direito de ser."

Esses trechos do escritor modernista estão num livro que ele deixou inacabado e que até hoje é menos conhecido do que merece, chamado "A gramatiquinha da fala brasileira".

Com organização de Aline Novais de Almeida, prefácio de Ataliba T. de Castilho e posfácio deste colunista, a "Gramatiquinha" acaba de ganhar uma cuidadosa edição patrocinada pela Fundação Alexandre Gusmão, vinculada ao Ministério das Relações Exteriores, no âmbito das comemorações do bicentenário.

Pois é: o fato de data tão importante –ideal para o balanço do muito que foi feito e do muitíssimo que ainda falta fazer neste paisão– ter sido contaminada pelo pior presidente da história não significa que o Brasil parou.

Que a discussão sobre nossa tardia independência linguística possa ficar para o ano 200+1, quando, se tudo der certo, teremos governo outra vez.

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