"O Brasil é hoje como a Espanha era em 1936, durante a Guerra Civil: é onde tudo que vai ser importante nas próximas décadas está visível", disse o filósofo francês Bruno Latour em entrevista a Ana Carolina Amaral para a Folha, em setembro de 2020.
Latour, um grande pensador da ecologia política que morreu no último dia 9, aos 75 anos, referia-se ao fato de se cruzarem de forma aguda em nosso país uma crise política, com a ascensão da extrema direita ao poder, e uma crise ambiental, com o crescimento da devastação da floresta amazônica.
Prosseguia ele: "É que – como posso dizer isso sem parecer desesperado? –se vocês administrarem uma solução, vocês salvam o resto do mundo. Porque em nenhum lugar há a mesma intensidade das duas tempestades se juntando, a ecológica e a política, como há no Brasil."
Em artigo publicado esta semana, o jurista espanhol Baltasar Garzón – mais conhecido como o homem que em 1998 mandou prender o facínora Augusto Pinochet, ex-ditador do Chile– faz coro com Latour.
"É cada vez mais evidente que estamos assistindo a uma crise civilizatória", escreve ele, citando em apoio à tese uma guerra na Europa, o retorno do fascismo, o colapso iminente do clima e a desigualdade cada vez maior da distribuição de riqueza no mundo.
"Neste contexto pouco encorajador, e embora à primeira vista possa não parecer, o que será decidido no Brasil no futuro próximo pode condicionar o futuro imediato de toda a humanidade", conclui Garzón.
É um fenômeno raríssimo que nosso país periférico e de importância geopolítica secundária, ainda que grandalhão, mereça esse tipo de atenção superlativa. Como assim, o futuro do mundo depende do Brasil?
Pois é. Mesmo não sendo nada de que a gente deva se orgulhar, essa centralidade no palco do planeta – que quase chamo de acidental, mas talvez seja estrutural mesmo, nas voltas de parafuso que a realidade dá –representa uma responsabilidade descomunal.
Na encruzilhada épica em que o mundo se encontra, se o gigante sul-americano optar por um caminho escancarado de mais exclusão, violência, extermínio, ódio, egoísmo, racismo, misoginia, homofobia e devastação ambiental, é possível que o projeto humano não tenha outra chance.
Na comparação de Latour, é imprescindível fazer agora o que a Espanha de 1936 não conseguiu: derrotar Franco. Derrotar Bolsonaro. Derrotar o fascismo. O mundo aguarda, de respiração suspensa.
E o contexto, hein? "Pintou um clima", disse Jair Bolsonaro sobre seu encontro com adolescentes venezuelanas de um projeto social, que ele insinuou serem prostitutas. O presidente do TSE, Alexandre de Moraes, proibiu a campanha de Lula de se referir a isso, alegando que esta cometia "grave descontextualização", com a "aparente finalidade de vincular a figura do candidato ao cometimento de crime sexual".
Bolsonaro usou uma desculpa parecida no vídeo que divulgou na terça-feira (18), no qual aparece ao lado de sua mulher e diz que aquelas palavras, "por má-fé, foram tiradas de contexto".
Considerando-se que "pintou um clima" saiu da boca do candidato à reeleição diante de uma câmera e espontaneamente, e ainda que ele não forneceu outra interpretação possível para a expressão além daquela –abjeta– que qualquer pessoa de boa-fé lhe dá, só nos resta concluir que a palavra contexto tem sido tirada de contexto.
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