Sylvia Colombo

Historiadora e jornalista especializada em América Latina, foi correspondente da Folha em Londres e em Buenos Aires, onde vive.

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Descrição de chapéu América Latina

Descaso e mal-entendidos deixam obra de Borges à deriva na Argentina

Destino de escritos de gênio da literatura latino-americana é incerto desde morte de sua viúva

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Poderia ser a trama de um romance fantástico, mas é a mais pura realidade. A obra de um dos gênios da literatura universal está à deriva e gerando confusão entre editoras, possíveis herdeiros e o Estado argentino.

Com a morte da também escritora María Kodama, viúva de Jorge Luis Borges (1889-1986) e detentora de seus direitos autorais, em 26 de março, veio a inacreditável notícia —apesar de doente havia vários meses, ela não fez um testamento indicando quem passaria a ter a posse da obra do autor.

Jorge Luis Borges e sua mulher, Maria Kodama, junto do fotógrafo francês François-Marie Banier (em pé), no Palácio do Eliseu, em Paris - Joel Robine -19.jan.1983/AFP

Desde então, o debate no mundo literário argentino tem sido esse: qual será o destino do legado do maior escritor argentino de todos os tempos?

O casal não teve filhos. Os parentes mais próximos de Kodama são seus cinco sobrinhos, que tinham pouca relação com ambos. Agora, pela lei, seriam eles os detentores dessa herança, composta por uma obra que não é vasta, mas tão essencial que tem venda alta e constante desde a sua publicação.

Alguns intelectuais argentinos não se conformam com a ideia de que o legado vá parar nas mãos destes sobrinhos.

A crítica literária Beatriz Sarlo defendeu que a alternativa mais sensata seria a Biblioteca Nacional comprar os direitos dos herdeiros e organizar uma nova edição da obra de Borges, projeto respaldado por vários autores.

Já o escritor Carlos Gamerro propôs a criação de um comitê de especialistas para determinar que destino dar ao acervo.

É preciso lembrar que Kodama foi injustamente atacada pelo meio editorial, que considerou sua decisão de pôr obstáculos a reedições que para ela desrespeitavam a intenção original de Borges um excesso de zelo.

Ela chegou a entrar na Justiça para impedir certos experimentos, como o "Aleph Engordado", uma intervenção na obra de seu marido realizada pelo escritor Pablo Katchadjian. Kodama o processou precisamente porque o jovem autor não só não explicitou que sua criação —que literalmente "engordava" o "Aleph", adicionando às 4.000 palavras do original outras 5.600— era um experimento com a obra de Borges, como era assinado pelo próprio Katchadjian.

O advogado de Kodama, Fernando Soto, vem rejeitando todas as propostas de "confiscar" a obra de Borges, contrárias à legislação atual. Ele argumenta que tanto o autor como sua mulher tinham horror à ideia de que os escritos fossem geridos pelo Estado. De fato, em uma entrevista em 2022, Kodama afirmou que não considerava deixar com nenhuma instituição estatal o patrimônio de Borges porque ele próprio não confiava nelas.

Soto reforçou: "Na Argentina, a população tem tantas necessidades que Borges odiaria a ideia de que o Estado argentino gastasse uma quantidade de dinheiro enorme para comprar os direitos dos sobrinhos de Kodama".

A argumentação segue a linha da relação sempre difícil do escritor com o Estado argentino. Há de se lembrar que, quando Juan Domingo Perón (1895-1974) assumiu o poder, transferiu o escritor da biblioteca a que se dedicava com esmero ao posto de inspetor de aves.

A fricção entre as partes persistiu, com o peronismo até hoje repudiando Borges por considerá-lo de direita e ter declarado preferir os militares a Perón. Esta foi uma das razões pelas quais o casal acabou mudando-se para Genebra.

Apesar da troca de farpas com o Estado, a obra do escritor é das que melhor retratam a Argentina, com amor e contradições, desde a coleção de poemas "Fervor de Buenos Aires" até a presença obsessiva de figuras que habitam os arredores da cidade e sua noite em seus escritos.

A trama atual é lamentável. Dos sobrinhos, espera-se a responsabilidade de cuidar bem deste legado essencial da humanidade e mantê-lo disponível para que reedições bem cuidadas o tornem mais acessível para todos.

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