O Pior da Semana

Escritora Tati Bernardi transforma em coluna as perguntas enviadas por leitores da Folha

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Todas as crônicas sobre cansaço (que não farei porque estou cansada)

São muitas as crônicas que poderiam explicar a exaustão crônica de Isadora

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Isadora acorda cansada todos os dias e quer saber o motivo.

Não sei sua cor de pele e sua classe social, mas pelo resto do relato por e-mail, vou supor que seja branca e que compre granola orgânica sem se importar com o preço. Poderia então fazer com você o que os leitores a fim de me esculachar fazem comigo quando me lanço em toscas tentativas de literatura existencialista: "Se você tivesse que pegar três conduções para limpar sua própria casa, aí sim saberia o que é estar exausta". As pessoas que fazem isso com uma cronista branca (que não se importa com o preço da granola) estão erradas? De forma alguma. Mas como me cansam.

Já se eu quisesse te responder da forma "existencialista cômica", a melhor maneira que eu conheço de me conectar minimamente com leitores, diria que não é mesmo fácil começar os dias com o apito imaginário e traumático do Gugu Liberato em nossas orelhas: "Valendo!"

Você se lembra de uma gincana em que o Gugu Liberato ia na casa de algum famoso e sorteava o nome de um objeto qualquer, tipo "dedal de costura", e então gritava "valendo"? Daí algum famoso imbecil saia correndo pela casa, cagando toda a arrumação de armários e gavetas (que uma boa pessoa tinha feito, mesmo cansada depois de três conduções), atrás de algo que ele provavelmente não tinha, se é que sabia o que era.

DimaBerlin - stock.adobe.com

Isso é a metáfora perfeita das nossas vidas. A gente se lança —uns dias com o esforço hercúleo da sobrevivência, outros com o sabor gástrico da ansiedade subindo pela goela —a encontrar esse objeto sorteado em uma gincana dominical do passado. Saímos da cama em nome do que aprendemos a chamar de fome, maternidade, reunião, vontade de fazer xixi, sede de conhecimento, responsabilidade, casa na praia, "peguete" do escritório, sucesso e Nutella.

Mas talvez, no fim da vida, a gente descubra que nosso cansaço é porque um dedal de costura não teria valido 90 anos de gavetas sendo expostas e arrumadas, bagunçadas e alinhadas. E se você não entendeu nada, Isadora, até nisso somos parecidas.

No entanto, se eu quisesse ser a pentelha da dica de saúde, Isadora, coisa que sou o tempo todo, lhe falaria da vitamina D, do hipotiroidismo, da endometriose, dos pólipos intestinais e das viroses que deixam corações fracos. Se anda com sede, investigue diabetes. Se sente uma dor crônica, posso já te dizer o que médicos com cinco doutorados vão lhe cobrar caríssimo para dizer: você tem dor crônica.

Se você se interessar por medicina chinesa, te diria para investigar a essência vital dos seus rins. Vão te dar umas cápsulas que param na glote e tudo bem, toma mais água que elas descem. Se suportar meu parco conhecimento de ayurveda, lhe indico deixar seus intestinos com um jejum de pelo menos oito horas durante a noite. Jamais comer carne, açúcar ou alface depois das seis da tarde. E não ver TikTok deitada na cama.

Por fim, poderia me arriscar na crônica feminista. Você está cansada porque todas as mulheres estão.

Carga mental, ganhamos menos que eles (eu não, mas para isso precisei brigar com metade da cidade), a preguiça que dá brigar o dia inteiro com o patriarcado e perceber que nós mesmas repetimos suas frases, filho só chama a mãe na madrugada e isso dura até os 25 anos deles, date é sempre uma nova chance de sofrer algum abuso, agora são 786 mil modalidades de abuso que eram naturalizados há 15 anos, lembrar disso dá um gatilho danado, carga mental, a preguiça que dá brigar o dia inteiro com o patriarcado e perceber que nós mesmas repetimos suas frases, filho só chama a mãe na madrugada e issozzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz.

Isadora, só não me caía no papo da Rhodiola Rosa. E isso é um extrato de planta para fadiga e não uma piada sexual.


Tati Bernardi responde às perguntas mais inusitadas e aos comentários mais estranhos de seus leitores. Quer participar da coluna O Pior da Semana? Envie sua mensagem para tati.bernardi@grupofolha.com.br

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