O Pior da Semana

Escritora Tati Bernardi transforma em coluna as perguntas enviadas por leitores da Folha

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O Pior da Semana
Descrição de chapéu Relacionamentos Mente Todas

Pra que serve Carnaval?

O casal de desconhecidos escorado na parede, uma escavação bucal que durava horas

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O leitor Bruno me escreve perguntando onde estaria a graça de ir a vários blocos de Carnaval e conclui, ranzinza, um não basta para essas pessoas? Já não está visto?

Bruno, primeiro é importante que você saiba que você é chato e infeliz. E tudo bem, estamos juntos. Eu também sou. Partindo dessa premissa de que somos péssimas pessoas, dá pra começar nossa conversa.

A maioria dos meus amigos espera ansiosa pelo feriado. Os cariocas que conheço acordam cinco da manhã do sábado (eu sei, parece castigo) e vão até o fim (que é em abril, acho) sem falecer de fadiga extrema (mesmo tendo 45 anos e filhos) numa entrega visceral.

Aqui em São Paulo minhas amigas vão juntas "comprar cabeça" (adoro quando dizem isso) e parecem realmente plenas e se sentem fazendo algo verdadeiramente feminista e revolucionário para o bem da luta por dias melhores de todos os humanos que já se sentiram minoria, mas estão mesmo são ávidas pra meter uma foto de bunda no Instagram.

Eu respeito todos eles e todos eles respeitam que eu me sinta igualmente animada somente em manhãs de check-up de rotina no laboratório Fleury com aquele roupão salmão puxado no rosa. E assim seguimos, cada um na sua. (Mentira, eu os acho meio tolos e eles devem me achar insanamente intragável).

Durante a adolescência e uma pequena parte da juventude eu aproveitei bastante o Carnaval. Ia com minhas comparsas do colégio para o Guarujá ou para a Riviera de São Lourenço e, por Deus, como eu beijava rapazes.

Ilustração representa pessoas fantasiadas para bloco de carnaval
Catarina Pignato

E eram aqueles beijos em pé, o casal de desconhecidos escorado na parede, uma escavação bucal que durava horas. A língua chegava a ficar dormente. A calcinha molhava tanto e depois secava por causa do calor (e depois molhava e secava e molhava e secava) que na hora de tirar para tomar banho tinha encolhido e virado um tijolo.

Eu era realmente feliz, mas eu também era feliz em todos os outros finais de semana do ano. Carnaval significava quatro ou cinco dias seguidos para eu fazer o que, no resto do ano, já fazia em quase todos os finais de semana: ser uma virgem que beijava loucamente e falava sobre isso ininterruptamente com as amigas.

Quando comecei a trabalhar e ter namoros mais sérios (e que finalmente envolviam beijar deitada) fui apresentada a uma maravilha que jamais superei e que encerraria para sempre meu interesse em alvoroços apinhados de humanos suados: pousadas com poucos quartos, silêncio, pássaros, livros, conforto e um macho exclusivo e ligeiramente duradouro cuja pele não estava mais salgada que o bacalhau da minha tia Iolanda.

Eu fiquei velha aos 22 anos de idade quando namorei um senhor que tinha 16 anos a mais do que eu e que tinha por hábito tomar banho, passar fio dental e entrar em um site chamado "roteiros de charme". E nunca mais desaprendi, apesar de amar samba e encontrar pessoas (umas 5 por vez no máximo desde que sejam amargas e irônicas configura amar encontrar pessoas?) como tudo aquilo era melhor do que ficar andando pelas ruas pulando feito uma demente e com algumas purpurinas que com o suor escorriam e iam parar no ânus e eu só queria chegar em casa e passar Hipoglós porque aquilo pinicava e inflamava.

Há alguns anos, quando me separei, minha querida Giovana Madalosso me emprestou adereços e me convidou a tentar mais uma vez. Expliquei para ela todas as nuances e pormenores que vão junto com meu trio elétrico: sou vasovagal, tenho pressão baixa, sou hipoglicêmica, tenho crise de pânico em locais cheios e quentes e, para resumir de uma vez, sofro de uma doença que não é exatamente rara, porém ainda não encontraram tratamento: sou insuportável, sou chatérrima, (mas porque sou de esquerda, disfarço meu elitismo reaça vexatório com doenças histéricas modernas). Sobretudo detesto lugar que não tem onde se sentar.

Fui com Giovana e Pedro (seu marido grande que me deu as mãos várias vezes, obrigada, Pedro, me senti protegida —na verdade atraída), em alguns bloquinhos e o batuque forte somado a alegria de tanta gente pôde, de fato, conferir ao meu espírito alguns segundos de glória.

Fui naquele com músicas do Caetano Veloso e até chorei de emoção, mas quarenta minutos depois eu estava em casa. Fui naquele Charanga do França e vi muita gente que conheço. Muita mesmo. Meu cérebro achou que era meu aniversário e foi tão confuso que precisei ir embora.

Meu namorado acha que sou assim porque não bebo, não me drogo. Eu acho que sou assim justamente porque namoro. Só tolero festas que não envolvam cadeiras e comidas quando estou solteira. A festa pela festa, sem cadeiras e sem comida e sem a possibilidade de transar com alguém "novo", não faz sentido.

Logo, se já estou namorando e posso transar (e ao mesmo tempo não quero transar com outro, o que é bom e ruim), eu vou escolher um lugar com cadeiras e comidas. E eu estou sempre namorando porque eu passei a vida dando em cima de tanta gente que sempre uma dá certo. Então foi uma vida inteira sentada comendo.

Eu não gosto de Carnaval pelo mesmo motivo que não gosto de Ano Novo e não gosto de chá de fralda, festa de casamento fora de São Paulo, festa de casamento em São Paulo, mêsversário, a palavra dinda, gente que fala "meus pais americanos do intercâmbio" e os espiritualizados do eletrônico (e os espiritualizados que tem o WhatsApp do Xamã).

Eu não suporto riquinho progressista e há pelos menos uns 15 anos eu só conheço o Carnaval do riquinho progressista porque é minha vida. Os desbravadores do Centro com seguro no Iphone 13. São as pessoas mais legais do mundo e são, na verdade, chaaaaatos pacarai—e o meu Carnaval seria um eterno encontrar e abraçar todos eles. Eu não sinto que pertenço às ruas desses riquinhos, eu não nasci aqui onde eles nasceram, mas não saberia voltar para a rua de onde eu venho. E não se pula Carnaval sem entender o que uma rua significa pra você.

Nunca pude desbravar um somatório infinito de asfaltos, fossem mais capeados ou menos capeados que os da minha infância, sem carregar culpa e saudade. E dane-se o dilema burguês desta leitora de Pierre Bourdieu deitada no ar-condicionado. Eu sou infinitamente mais ridícula do que qualquer personagem cronicável.

Talvez seja esse o problema. Eu não sei qual é a minha rua. Eu tenho medo do Centro, nojo de cercadinho VIP e preguiça mortal da galera cool de Pinheiros. Eu não saio de casa porque eu não sei onde eu moro. Será que é preciso, antes, saber muito bem quem se é pra pular Carnaval?

Eu não suporto ver um monte de branco coberto de purpurina dançando com camiseta do Lula e desviando, (sem dizer que desviam, sem pensar muito que desviam, sem deixar a dor de desviar estragar a festa) de moradores em situação de rua (e precisamos enfiar esse "situação" na rua e na frase pra não pensar na nossa rua e na nossa situação).

"É foda, mano, quero fazer algo". E o que fazemos? Levamos roupas usadas para o padre Júlio distribuir, às vezes depositamos uns 500 contos na conta do padre Júlio e ajudamos a Unicef e o Sem Fronteiras. Mas o cheiro ali na rua onde mora uma família inteira tá forte mesmo, vamos mais pra lá? Sem dizer, sem admitir, apenas caminhando para longe, todos juntos, aquele silêncio constrangedor no qual você se pergunta que cacetes enigmáticos tá fazendo ali vestida de fada progressista se tem 3 protusões na lombar e 2 na cervical, mas é preciso ser feliz.

Bruno, depois te passo umas dicas de filmes no Mubi pra gente ficar deprimido juntos.


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