Terra Vegana

Luisa Mafei é culinarista e professora de cozinha a base de vegetais

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Bicho morto no meio do pão

Se eu pudesse voltar atrás, faria tudo completamente diferente

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Há uma grande tensão que ronda a vida de nós veganas e veganos todas as vezes em que botamos o pé para fora de casa. Sobretudo, quando alguém nos convida para comer —ou quando ninguém nos convida para nada e saímos, digamos, para resolver burocracias no cartório, sem saber por quanto tempo estaremos longe da nossa geladeira.

Esse fantasma da "fome" que assola o nosso estômago é uma tensão eletiva, e, num país como o Brasil, pode até soar um "luxo". Por isso, antes de seguir com as lamúrias de uma vegana que não sabe se encontrará ou não algo que possa comer no menu do restaurante, é importante ressaltar que existe um movimento expressivo de veganismo popular e periférico no país da fome não eletiva.

Sanduíche em loja do McDonald's, com carne de origem animal - REUTERS

Isso quer dizer que, a algumas dezenas de quilômetros de Pinheiros, Higienópolis ou dos Jardins, existem pessoas que optaram por um veganismo sem chia ou spirulina, mas com muito arroz, feijão e uma variedade enorme de frutas e vegetais que não foram comprados no Pão de Açúcar.

Nunca tive pudor algum em abrir marmitas em restaurantes e bares, e, nas vezes em que fui chamada a atenção, respondia friamente "eu não como nada de origem animal e não tem nada que eu possa comer aqui, me desculpe", sem pensar no bolso do comerciante, ou na vergonha que minha melhor amiga passaria.

Esse hábito durou uns bons três meses, durante os quais sair de casa exigia todo um planejamento que culminava numa sacola térmica carregada a tiracolo para qualquer ocasião. Eu nunca deixei de ir a nenhum lugar "por não ter o que comer", e uma vez abri uma marmita linda, de salada no pote, em pleno McDonald 's. Comprei um suco de maracujá para não ficar chato.

A gerente saiu de trás do balcão, foi até a mesa, e me disse uma única frase: "não é permitido fazer piquenique no nosso estabelecimento". Era tudo o que precisava ouvir para começar o meu discurso em defesa dos animais. "Vocês estão servindo bicho morto no meio do pão".

Não tinha a menor consciência de que, além de salvar um total de zero animais com minhas sentenças em alto e bom som, estava reproduzindo a lógica de opressão contra a qual tentava lutar, apontando o dedo para uma trabalhadora que estava apenas trabalhando. Mente quem diz que, se pudesse voltar atrás, faria tudo igual de novo. Eu faria completamente diferente.

De uns anos pra cá, entrei no abismo esporádico do "vou comer o que tiver". E descobri que eu estava errada. Sempre há pelo menos uma opção 100% vegetal. Pão com azeite. Azeitonas. Paçoca. Açaí. Vitamina de frutas com suco de laranja. Salada de frutas. Amendoim. Mandioca frita. Picolé de limão. Pastel de palmito. Polenta.

Outro dia mesmo, almocei batatas fritas com um chá de lata. Nada saudável, ainda mais para uma grávida. Mas é preciso olhar a comida para além do seu valor nutricional. Comer é um ato fundante da nossa sociabilidade, e embora eu ainda seja fã das marmitas (carrego sempre comigo nos dias em que trabalho fora de casa), acho libertador fazer, eventualmente, um almoço completamente fora da casinha.

As batatas fritas, mergulhadas em ketchup, foram para mim o melhor almoço da semana, porque enfim conheci a editora desta coluna, a Marcella Franco. A sensação de que o encontro vale mais do que a comida também nutre, e um encontro sem tensões e julgamentos em relação ao que cada um come é terreno fértil para conversas que tocam e que fazem sentido —inclusive sobre o veganismo.

Na hora de pagar, sugeri ao operador do caixa algumas opções veganas que poderiam rechear, com simplicidade, os pães do sanduíche. Ele riu, e ficou de passar a sugestão adiante. Vou voltar para conferir.

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