É no silêncio estarrecedor das autoridades que Ágatha Vitória Sales Félix, 8 anos, morre de novo. E de novo. Morrem Jenifer Gomes, de 11 anos, Kauan Peixoto, 12, Kauaã Rozário, 11, e Kauê dos Santos de 12 anos. Crianças assassinadas neste ano em operações policiais fluminenses. Nenhuma palavra de Witzel, Moro, Damares e Bolsonaro sobre a morte de uma criança de 8 anos pelo Estado.
Neste silêncio é possível ouvir repetidamente o barulho dos tiros que mataram Ágatha Félix. Ou escutar o ruído de dezenas de crianças agachadas no chão em uma escola no Complexo do Alemão enquanto helicópteros policiais sobrevoam a região ao som de tiros. Como fazer com que caiba aqui tudo que Ágatha, Jenifer, Kauan, Kauaã e Kauê viveram? As aulas de balé, de inglês, suas risadas, medos, aspirações. Como honrá-los sem reduzi-los ao momento de brutalidade por meio do qual se foram?
Uma forma de lidar com a barbárie é dar o nome que lhe cabe: terrorismo de Estado.
Barbáries nos demandam clareza em tempos polarizados. Provocar terror social ou generalizado, expondo pessoas a perigo por razões de discriminação de raça, cor e etnia é –por definição legal– terrorismo. Atentar contra a vida e integridade física das pessoas, neste contexto, é punível pela lei antiterrorismo de 2016 com reclusão de 12 a 30 anos, não restringindo o texto legal a atos de agentes não-estatais. E é isto que ocorre hoje no Rio de Janeiro: terrorismo perpetuado por agentes de Estado.
Mortes como a de Ágatha não são danos colaterais ou fatalidades ocasionais. São parte central da política de terror social que vigora hoje no Rio de Janeiro. Informações oficiais indicam que 2019 ultrapassará o recorde macabro de mortes pela polícia (entre janeiro a julho deste ano, foram 1.075 mortos, ou seja, 35 por semana, conforme indica a seção Igualdades da revista Piauí).
Terror social se tornou política de Estado no Rio de Janeiro. Polícia fluminense matou duas vezes mais que toda a polícia dos EUA. Triplicaram os mortos pela polícia entre 2014-2018. Para quaisquer lados, trata-se de uma política ineficiente: policiais fluminenses estão entre os que mais morrem no país, em operações teatrais sem qualquer resultado efetivo.
Se todos de fato quisermos mais segurança pública, é no policiamento inteligente –e não na morte de crianças– que devemos investir. Se quisermos levar a sério esse embrionário Estado de Direito, precisamos arquitetar formas de prover segurança que não nos igualem às atrocidades cometidas pelo outro lado. Se a morte de uma criança, de várias crianças, não nos fizer superar polarizações e reconstruir juntos o que nos restou de país, não imagino o que poderá fazê-lo.
Na crueldade protocolar das autoridades fluminenses mora a banalização do mal.
Sobre Ágatha, a PM se limitou a afirmar que equipes policiais "foram atacadas de várias localidades da comunidade de forma simultânea. Os policiais revidaram à agressão". Revidaram à agressão que uma menina de 8 anos apresentava. A nota da assessoria do governo do Estado afirmou que "segue protocolos rígidos de execução". Repito o termo escolhido: “execução”. Sobre as escolas sitiadas em meio a helicópteros de guerra, a Secretaria Municipal de Educação afirmou que “em função de tiroteios entre policiais e marginais em determinados pontos de comunidades do Rio, o período de aula acaba interrompido para algumas crianças.” Interrompem-se aulas e vidas.
Lembro aqui de um ensaio que Hannah Arendt escreveu em 1968, no pós-Guerra, intitulado “Responsabilidade Coletiva”: “embora ’somos todos culpados’, à primeira vista, soe como algo tão nobre e tentador, na verdade só serve para eximir em grau considerável aqueles que realmente são culpados. Onde todos são culpados, ninguém é.”
Se as mortes no RJ têm endereço certo, também o tem a culpa por elas. São mortes arquitetadas onde mora o poder, nos gabinetes onde o terror social é engendrado, mas nunca sofrido. A eles, que recaia o peso da responsabilidade pelo terrorismo estatal que impõem.
Por Ágatha Félix, presente.
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