Cinicamente, o veto isolado dos Estados Unidos à proposta brasileira de resolução humanitária revela descaso por convenções básicas do direito da guerra. Joga fora, ademais, o bebê do multilateralismo com a água do banho da resolução ao enfatizar de forma paternalista que a ONU deveria deixar Biden fazer "o trabalho duro da diplomacia em campo", como se o país fosse o único adulto na sala quando não o é.
Historicamente, reitera a política norte-americana de vetar resoluções sobre Israel-Palestina (de 20 vetos desde 1990, 17 foram sobre o tema): o país se mostra dependente do percurso criado por ele mesmo de rir do multilateralismo. Biden usou o primeiro veto de sua presidência no Conselho de Segurança para rejeitar resolução que expressava o mínimo de decência moral num mundo violentamente indecente.
Nada no texto justifica o veto. Foi notável o esforço em atender demandas das diferentes partes: o placar de 12 votos a favor indica vitória diplomática brasileira, a despeito dos EUA, da qual o Brasil sai maior. A resolução condenou os ataques do Hamas, qualificando-os como terroristas, pediu pausa humanitária (linguagem já suavizada) e reiterou a proteção a civis.
A justificativa dos EUA —não mencionar autodefesa de Israel— tampouco procede. As regras que regem a proteção a civis na guerra ("jus in bello") independem das razões que inicialmente a motivaram ("jus ad bellum"); são crimes de guerra raptar civis como o Hamas fez ou punir civis como Israel fez, não importa quem atacou primeiro. Israel (e qualquer Estado) já possui o direito à autodefesa "caso um ataque armado ocorra" por força da Carta da ONU.
Existem os EUA da tortura de Abu Ghraib, no Iraque, e dos horrores no Vietnã; e existem os EUA de Eleanor Roosevelt, redatora da Declaração Universal de Direitos Humanos, e de Du Bois, que denunciou a segregação nas Nações Unidas. Biden se mostrou mais próximo da primeira tradição, revelando que a diferença entre republicanos e democratas, no militarismo, é estética. Não deveria ser.
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