Thomas L. Friedman

Editorialista de política internacional do New York Times desde 1995, foi ganhador do prêmio Pulitzer em três oportunidades

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Descrição de chapéu The New York Times

Israel e Arábia Saudita protagonizam revolução no Oriente Médio

Guinada conservadora em Tel Aviv e processo de abertura em Riad acendem alerta para os EUA

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Riad (Arábia Saudita) | The New York Times

"Seu destino final é Tel Aviv?" Sou repórter no Oriente Médio desde 1979, e essas são seis palavras que eu nunca ouvira sendo ditas no lugar onde eu estava.

Eu estava fazendo o check-in para voar de Doha, no Qatar, para Tel Aviv, com escala em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos. Era uma conexão que no passado teria sido impensável, mas que agora estava sendo mencionada pela agente da FlyDubai no Aeroporto Internacional de Doha com a mesma naturalidade com que ela teria perguntado se eu ia para o Cairo com escala em Riad.

Meu instinto foi pedir: "Pode falar mais baixo, por favor?". Afinal, muitos repórteres que trabalhávamos em Beirute na década de 1970 nem sequer usávamos a palavra "Israel". Nos referíamos ao país apenas como "Dixie" —a região ao sul do Líbano. Agora os códigos de aeroporto DIA (Doha), DXB (Dubai) e TLV (Aeroporto Internacional Ben Gurion, em Israel) estavam colados às minhas malas à vista de todos.

Alguns dias mais tarde, passei por três cidades que de repente pareciam mais próximas que nunca: tomei o café da manhã em Tel Aviv; almocei em Amã, na Jordânia, e jantei na capital da Arábia Saudita, Riad.

Homem saudita ensina sua esposa a dirigir em Khobar, na Arábia Saudita - Tasneem Alsultan - 20.jun.18/The New Tork Times

Essa viagem foi diferente de qualquer coisa que já vivi na região que é meu segundo lar. Ela me fez entender uma coisa surpreendente: como antigos inimigos e rivais no Oriente Médio estão prestes a ficar muito mais conectados e interdependentes do que jamais estiveram. Isso está criando parcerias que teriam sido inconcebíveis no passado, além de tensões enormes, na medida em que povos da região tentam decifrar até que ponto querem ser modernos, seculares, abertos, interligados —e democráticos.

Os dois países que exemplificam melhor este momento são os dois aliados mais importantes dos EUA no Oriente Médio, Israel e Arábia Saudita. Ambos estão simultaneamente vivendo lutas internas fundamentais em torno de sua identidade. Na Arábia Saudita e em Israel, as relações entre as autoridades religiosas e o Estado nunca passaram por um momento de tantas transformações quanto agora.

Na Arábia Saudita, as transformações sociais sendo impostas pela mão de ferro do príncipe herdeiro Mohammed bin Salman (MBS) são tão profundas que, se você não esteve no país nos últimos cinco anos e for para lá agora, vai se sentir como se estivesse em um país novo e desconhecido.

Na última vez em que eu tinha visitado Riad, no final de 2017, as mulheres sauditas não podiam conduzir veículos. Hoje, não apenas as mulheres dirigem, como a primeira astronauta mulher saudita (que é também a primeira astronauta árabe), Rayyanah Barnawi, acabou de ajudar a levar um foguete Falcon 9 da SpaceX do Centro Espacial Kennedy para a Estação Espacial Internacional.

Enquanto isso, a aspiração original de Israel de ser um Estado judaico e também um Estado democrata corre perigo tão grave, criado por um governo extremista que se esforça para sufocar a independência da Suprema Corte, que produziu inusitadas 22 semanas consecutivas de enormes protestos de rua de israelenses engajados com a democracia. Se você não esteve em Israel nos últimos cinco meses, será como se nunca tivesse estado, porque tudo estará completamente diferente.

Em outras palavras, os EUA assistem à recriação, na prática, de dois países que são vitais para nossos interesses. Duas nações que ao mesmo tempo estão discutindo em segredo a possibilidade de paz entre elas. E duas nações que também estão tentando decidir o grau de proximidade que querem ter com a grande potência rival de Washington, a China, cuja atenção está cada vez mais voltada ao Oriente Médio.

Quando chefiei a sucursal do New York Times em Jerusalém, entre 1984 e 1988, Israel e China não tinham relações diplomáticas. Ficamos felizes quando o primeiro restaurante chinês kosher foi aberto perto de nosso escritório, apesar de não haver porco na sopa de wonton.

Hoje, com Israel cheia de startups, Pequim vem intensificando seus esforços para comprar ações ou formar parcerias com empresas e universidades israelenses, tanto assim que os serviços de segurança israelenses hoje precisam vigiar visitantes e diplomatas chineses. Recentemente também a China mediou um acordo para restaurar as relações diplomáticas entre o Irã e a Arábia Saudita. Esta é agora a maior fornecedora de petróleo da China, e a China é a maior compradora do petróleo saudita.

Representantes de China, Irã e Arábia Saudita durante encontro que formalizou acordo entre Teerã e Riad sob mediação de Pequim
Representantes de China, Irã e Arábia Saudita durante encontro que formalizou acordo entre Teerã e Riad sob mediação de Pequim - 10.mar.23/China Daily via Reuters

Por todos esses motivos, os EUA precisam despir-se de qualquer inibição e exercer o papel mais ativo possível com Israel e Arábia Saudita. Não é hora de os EUA tomarem distância do Oriente Médio. É hora de estarmos mais presentes que nunca com nossos valores e nossas ferramentas de soft power.

Joe Biden só deve convidar Binyamin Netanyahu ao Salão Oval, como todos os premiês israelenses anteriores, se ele responder a duas perguntas: primeiro, você está ocupando a Cisjordânia e está engajado em resolver o status permanente dela por meio de negociações com os palestinos ou encara o controle que Israel exerce hoje sobre os palestinos como o status permanente, que nunca deve mudar?

Precisamos saber de uma vez por todas. E a segunda pergunta: você se compromete a garantir que quaisquer modificações grandes no Judiciário de Israel serão implementadas com apoio público amplo, para garantir a estabilidade política? Porque os Estados Unidos têm um interesse enorme em não ver seu aliado militar mais importante na região mergulhar numa guerra civil em torno do controle do Judiciário.

Nos últimos 75 anos, Israel tem sido parceiro estratégico vital e confiável dos EUA, mas isso sempre foi baseado em interesses e valores compartilhados. Se esses valores já não são compartilhados, precisamos saber. Precisamos apoiar os israelenses que querem preservar Israel como democracia —e precisamos manter as portas da Casa Branca fechadas a quem não quer.

Quanto à Arábia Saudita, em um momento em que sua petrolífera Aramco rivaliza com a Apple e a Microsoft como empresa mais valiosa do mundo, o país está alcançando a maioridade, e Riad tomou o lugar do Cairo como a potência mais importante do mundo árabe. Precisamos nos engajar regularmente com os líderes e a sociedade sauditas —para assegurar que Riad exerça o poder de modo responsável e para incentivar o povo e os líderes sauditas que estão se esforçando para tornar o país mais moderado religiosamente, mais respeitoso para as mulheres, mais tolerante para todas as religiões, mais economicamente diversificado e mais aberto a opiniões divergentes.

As cidades mais sagradas do islã, Meca e Medina, ficam na Arábia Saudita; logo, o modo como esse país se moderniza e pluraliza vai influenciar mesquitas e comunidades muçulmanas pelo mundo afora.

Biden está cada vez mais confiante em suas relações com o Israel de Netanyahu e a Arábia Saudita de MbS —fazendo pressão e impondo limites onde necessário e fomentando aproximações no interior de suas sociedades, entre os dois países e com os EUA. Mas ainda há muito engajamento pela frente. Deixe-me mostrar o porquê em detalhes com alguns instantâneos de minha viagem.

Mulheres sauditas praticam direção em Dammam, na Arábia Saudita - Tasneem Alsultan -17.jan.18/The New York Times

Na minha primeira manhã em Tel Aviv, levantei às 7h e fui caminhar no calçadão à beira-mar para dar meus 10 mil passos diários. Em dado momento, duas jovens israelenses passaram por mim, descalças e usando roupa de mergulho preta, equilibrando pranchas de surfe na cabeça. Não pude deixar de sorrir interiormente —será que Theodor Herzl, quando concebeu a ideia de um Estado judaico moderno, isso na Europa do século 19, teria imaginado ver algo assim?

Alguns minutos mais tarde, outras duas jovens se aproximaram. Pareciam ser muçulmanas, com as cabeças cobertas por véu preto, vestidos longos e tênis nos pés. Elas me fizeram pensar em algo diferente: este país —esta região inteira— só vai poder prosperar se essas quatro mulheres puderem compartilhar o mesmo calçadão de beira-mar com dignidade, em uma sociedade e cultura que valoriza o conceito de "viver e deixar viver". Mas viver e deixar o outro viver à sua maneira requer trabalho e a liderança certa, quer ela venha de chefes de Estado ou de vizinhos.

Um velho amigo meu, Uri Dromi, ex-piloto da Força Aérea israelense, me contou algo que vivenciou quando ele próprio enfrentou a necessidade de "viver e deixar viver". Duas semanas atrás, ele e alguns colegas da Força Aérea decidiram visitar Bnei Brak, cidade a leste de Tel Aviv de maioria ultraortodoxa que está dando todo apoio aos esforços de Netanyahu para reformar a Suprema Corte, dada a frequência com que esta intervém para frear o poder e os privilégios dos ultraortodoxos. Dromi vem mobilizando outros aviadores aposentados para fazer oposição ao esforço de Netanyahu, e eles foram a Bnei Brak para tentar compreender como é possível que "haja pessoas que pensam de modo tão diferente sob o mesmo céu".

Na noite antes da visita, Dromi telefonou à padaria kosher Hazvi para encomendar dezenas de pães chalá, que os judeus frequentemente comem aos sábados, com sacos plásticos com o logotipo kosher da padaria para acomodar cada pão. Ele usou os pães como seu "cartão de visitas", colocando um bilhetinho em cada saquinho: "O shabat é caro a todos os nossos corações. A democracia, também".

Isso acabou gerando várias conversas que levaram Dromi a refletir. Uma mulher ultraortodoxa lhe disse: "Você está tentando impor a mim sua agenda progressista, e eu preciso me defender". Ela acrescentou: "Meu marido passa o dia estudando, e eu sou engenheira de computadores". Quando Dromi questionou por que seu marido não trabalha, ela respondeu: "Porque desde o Holocausto precisamos de famílias grandes, e alguém precisa manter acesa a tocha da Torá". Dromi observou que, para um progressista, "isso pode soar como sandice, mas é algo em que eles acreditam profundamente".

Quando ele estava sentado num banco, um garoto ultraortodoxo se aproximou e lhe perguntou: "O que é democracia?". "Isso me deixou comovido", contou. Falei: "Na democracia todos são iguais, como você e eu, e se alguma coisa acontecer entre nós, vamos ao tribunal". O garoto disse que lhe foi dito que eles não devem ir a um tribunal do governo porque "é um tribunal goyim", ou seja, feito para atender a gentios.

Um dia depois, o presidente de Israel, Isaac Herzog, compartilhou comigo que a pergunta que ouve com mais frequência de outras pessoas é sobre as discussões que ele convocou para mediar algum tipo de acordo sobre a reforma judicial.

Estou convencido de que muito mais pessoas em Israel e na região estão exaustas de tanto odiar umas às outras e já transcenderam as divisões políticas —ou, pelo menos, querem muito fazê-lo. As realidades que elas vivem hoje são muito mais interligadas do que se poderia supor.

Infelizmente, desde 1996 a estratégia de Netanyahu para vencer eleições e governar é feita de dividir, dividir, dividir –a esquerda da direita, os judeus dos árabes palestinos, seculares de religiosos, ashkenazis de sefarditas— e tentar vencer cada eleição com apenas 50,001% dos votos, como Donald Trump.

Netanyahu está longe de ser o único problema, mas desde que chefiou o governo pela primeira vez ele tem sido uma figura de peso enorme na vida política de Israel —e está em seu sexto mandato. Netanyahu é inteligente e é um talento político do tipo que só aparece uma vez em uma geração, mas sua paranoia, sua desonestidade e agora seu medo de ir para a cadeia por acusações de corrupção o converteram em figura tóxica que prioriza sua permanência no poder a qualquer custo, não a união da nação.

Desta vez, contudo, acho que Bibi passou do ponto e enfiou uma seta fundo demais no coração de Israel.

Acompanhei a espantosa marcha de protesto pela democracia que aconteceu em Tel Aviv na noite de 20 de maio, um sábado. Foi a vigésima semana consecutiva em que milhares de israelenses saíram às ruas para resistir à tentativa de Netanyahu de tomar o Judiciário. Um cartaz em especial chamou a minha atenção, escrito em hebraico: "Bibi, você reprimiu a geração errada".

E não há dúvida disso. Eu estava observando a manifestação na companhia de um dos colunistas mais famosos de Israel, Nahum Barnea, do Yedioth Ahronoth, e de sua esposa, Tammy. Em dado momento, Tammy observou toda a energia dos jovens manifestantes que gritavam em hebraico "DE-MO-CRAT-YA" e me disse que essa era a tentativa dos israelenses de "reparar os danos do assassinato de Rabin".

Eu nunca ouvira isso antes. Tammy explicou que o assassinato do primeiro-ministro Yitzhak Rabin, em 1995, por um ultranacionalista não foi apenas um ataque ao processo de paz de Oslo, que Rabin liderava —foi também um ataque a todo o processo democrático em Israel.

O assassino de Rabin votou com uma bala, e então seus aliados políticos, alguns dos mesmos supremacistas judaicos que agora estão no gabinete israelense, votaram nas urnas, abrindo o caminho para o primeiro dos seis mandatos de Netanyahu. Desde então, colonos judaicos vêm sendo implantados cada vez mais fundo na Cisjordânia, tornando quase impossível uma solução de dois Estados, e mais recursos e poderes foram transferidos do Estado secular para os ultraortodoxos, dando-lhes o poder de escolher líderes na política de Israel.

Agora, uma geração israelense mais jovem, incluindo muitos que nasceram após a morte de Rabin, está se levantando e se unindo ao centro da sociedade israelense para dizer que esse movimento de afastamento da democracia precisa parar.

Como é o caso de todos os movimentos desse tipo, a chave é converter a energia dinâmica dessa coalizão inteiramente nova de centro-esquerda e centro-direita em uma energia política sustentada que possa um dia chegar ao poder pelo voto e impulsionar novas abordagens do tipo "viver e deixar viver" em Israel —e talvez, algum dia, até mesmo entre israelenses e palestinos. Veremos.

Mas posso afirmar o seguinte: tendo observado os movimentos de protesto no Egito, em Hong Kong e em Istambul, este é de natureza diferente. Ele é encabeçado por uma coalizão dos tecnólogos e dos combatentes de guerra da elite do país, que estão usando as habilidades que aprimoraram competindo no Vale do Silício ou travando combates noturnos no Vale do Bekaa, no Líbano, para deixar claro para Netanyahu que eles podem e irão fazer Israel parar —desde suas instituições até sua economia de startups e sua Força Aérea— se ele tentar destituir a Suprema Corte de sua independência.

Ouça alguns dos organizadores dos protestos e você entenderá como esse movimento é singular. "Comecei como piloto da Força Aérea e fundei seis empresas", disse Gigi Levy-Weiss. "Criamos 50 mil empregos. Quando começamos, todos entendemos que não podemos mais ficar alheios ao que está acontecendo." Desta vez, "não vamos nos limitar a barrar essa legislação", mas vamos pensar sobre "como construir a infraestrutura" que proteja a democracia israelense de modo permanente, disse ele.

David Gillerman, que serviu na equipe de elite de buscas e resgate da Força Aérea israelense e hoje é um grande empresário imobiliário no país, me falou que disse a seus filhos que está se envolvendo profundamente no movimento de protesto "para que eles tenham um país de verdade no qual crescer". "Esta é nossa nova guerra de independência. Tudo isso despertou um leão adormecido."

Bibi definitivamente tentou reprimir a geração errada. Mas nunca, jamais, subestime até onde Netanyahu se dispõe a ir para se manter no poder. Para manter sua coalizão unida, ele aprovou um orçamento que transfere valores enormes às escolas de seus aliados do partido ultraortodoxo —escolas que rejeitam o currículo escolar fundamental de Israel—, a seus estudantes de religião e adultos que não servem no Exército e aos moradores dos assentamentos judaicos na Cisjordânia.

"O novo orçamento inclui um incremento sem precedentes nas verbas destinadas aos assentamentos e aos ultraortodoxos, incluindo o financiamento pleno de escolas para que não ensinem inglês, ciências e matemática. Esse incremento orçamentário, por si só, é mais do que Israel investe anualmente em todo o setor do ensino superior, mais do que 14 anos de financiamento completo da Technion, o MIT de Israel", disse Dan Ben-David, macroeconomista da Universidade Tel Aviv. "É uma insensatez absoluta."

A parcela da população israelense que é ultraortodoxa dobra mais ou menos a cada 25 anos, acrescentou Ben-David. "Hoje, 24% das crianças pequenas no país são ultraortodoxas. Até 2050, serão metade. Nenhuma delas aprende preceitos básicos da educação cívica, sobre a separação entre Poderes ou sobre como funciona a democracia liberal, o que dirá receber as ferramentas para prosperar em uma economia moderna", disse. "Se não tomarmos providências agora, será o prego final no caixão do nosso futuro."

Então imagine como achei bizarro, três dias depois de conversar com Ben-David em Tel Aviv, estar sentado na sala de estar do ministro da Educação saudita, Yousef al-Benyan, ouvindo-o descrever como a Arábia Saudita está reformando os currículos de suas escolas públicas e universidades, com vistas a desenvolver uma força de trabalho de homens e mulheres capazes de competir numa era pós-petrolífera.

Os livros didáticos das escolas públicas foram editados para eliminar materiais que promovam a intolerância de outras religiões ou a subserviência das mulheres, e o governo está intensificando a formação de professores, com o objetivo de "incutir a aptidão tecnológica ao lado do pensamento crítico, capacidade de buscar soluções de problemas e capacidades analíticas" necessários para alinhar o sistema de educação saudita "com padrões internacionais competitivos", nas palavras de um estudo recente do Oxford Business Group. O país ainda tem um longo caminho a percorrer, mas, em comparação com uma década atrás, o que está acontecendo constitui uma revolução na educação.

É interessante notar que al-Benyan chefiou no passado uma das empresas mais importantes do país, a Sabic, que é uma das maiores companhias petroquímicas diversificadas no mundo. A liderança saudita quis um ministro da Educação que entendesse o que é preciso hoje para se conseguir um bom emprego no setor privado, porque o tempo em que o estudante podia fazer um bacharelado em estudos islâmicos e imaginar que com isso conseguiria um emprego bem pago no governo já ficou no passado.

É exatamente o oposto do que Israel está fazendo com sua juventude religiosa. Vai entender.

Ao mesmo tempo, a Arábia Saudita está tentando reprimir as forças religiosas rígidas que Israel está empoderando cada vez mais. Mas a família governante saudita tem muito chão a recuperar, porque os excessos religiosos que ela cometeu em casa e financiou no exterior a partir de 1979 deturparam o mundo muçulmano inteiro e ajudaram a inspirar o 11 de Setembro. A história resumida: os tradicionalistas sauditas islâmicos receberam rédeas livres após 1979, depois que extremistas assumiram a direção da Grande Mesquita de Meca e acusaram a família reinante al-Saud de ser insuficientemente religiosa.

Em resposta, a família governante concedeu a seus clérigos poderes irrestritos de impor a vertente mais puritana do islamismo em casa e exportá-la para o mundo. Isso transformou a face do islã globalmente.

O príncipe herdeiro Mohammed, que é o governante "de facto" agora que seu pai, o idoso rei Salman, afastou-se da maioria de seus deveres de liderança pública, vem basicamente revertendo o que foi feito em 1979 —colocando as autoridades religiosas sob o controle do governo, colocando os islâmicos mais radicais na prisão e retirando o fardo pesado que eles haviam posto em cima da sociedade saudita—, tudo isso com a adesão forte dos dois terços da população que têm menos de 30 anos.

Achei bastante simbólico que em 2021 o ministro de MbS para os Assuntos Islâmicos ordenou que todas as mesquitas abaixassem o volume de seus alto-falantes, "dizendo que famílias vinham reclamando que o barulho não estava deixando seus filhos dormirem", segundo informou a agência de notícias Reuters.

O grande ponto de interrogação para a Arábia Saudita é se o país poderá se conservar estável e realizar pelo menos metade de suas ambições, em um momento em que se está pedindo a todos os sauditas que embarquem no trem-bala para a modernidade que quer compensar décadas de desvios sob a direção de velhos cansados para os quais bastavam transformações processadas no ritmo de 5 km/h.

Mulheres sauditas assistem à partida de futebol entre Al-Hilal e Al Ittihad no estádio King Fahd, em Riad
Mulheres sauditas assistem à partida de futebol entre Al-Hilal e Al Ittihad no estádio King Fahd, em Riad - Faisal Al Nasser - 3.jan.19/Reuters

O que quero dizer com um trem-bala? A última vez em que estive na Arábia Saudita, no final de 2017, MbS surpreendeu o país ao anunciar que, pela primeira vez, mulheres e meninas sauditas seriam autorizadas a assistir a partidas de futebol como torcedoras. Voltei agora e descobri que a primeira liga do futebol feminino saudita está a caminho de sua segunda temporada.

Na última vez em que estive na Arábia Saudita, MbS havia anunciado que as mulheres teriam o direito de dirigir veículos. Quando voltei, descobri que em março de 2022 a piloto de corridas Aseel al-Hamad se tornou a primeira saudita a dirigir um carro de Fórmula 1 no país, enquanto Reema Juffali se tornou a primeira saudita a competir num evento de automobilismo internacional, em 2019. Se você chamar um Uber em Riad hoje em dia, o carro pode muito bem ser conduzido por uma mulher.

A rapidez e a extensão da transformação da sociedade saudita não têm sido adequadamente divulgadas, em parte porque poucos jornalistas estrangeiros foram ao país durante a pandemia Covid, período em que muitas reformas alcançaram velocidade de escape, e em parte porque muitos jornalistas —entre os quais eu me incluo— encontram dificuldade em escrever sobre mudanças positivas autênticas na Arábia Saudita quando o autor de muitas delas é MbS, o mesmo que em 2018 autorizou o esquartejamento grotesco e sem sentido do jornalista saudita Jamal Khashoggi.

A única resposta para Biden é falar de ambos. Deixar de lado o que os homens de MbS fizeram a Khashoggi seria imoral e não condizente com os valores e interesses dos EUA. Tampouco é o caso de deixar de mencionar a repressão que os sauditas continuam a exercer sobre quaisquer expressões públicas de dissensão ou críticas à liderança, sobre qualquer tema. Nestes tempos de transformação acelerada, MbS se beneficiaria ao deixar que mais vozes sauditas fossem ouvidas.

Mas seria irresponsabilidade as autoridades americanas adotarem uma postura permanentemente crítica e distante em relação à Arábia Saudita. Isso seria ignorar as reformas extensas e bem recebidas pela população que MbS lançou em seu país e que podem transformar a Arábia Saudita e todo o mundo muçulmano de algumas maneiras muito sadias —maneiras que também são do interesse dos EUA.

Essa tensão nunca vai desaparecer enquanto MbS estiver no comando. Se você só quer escrever sobre ou engajar-se com países sem dilemas morais, você veio para a região errada.

Quando comecei a trabalhar nesta região, judeus não eram bem-vindos na Arábia Saudita a não ser que seu sobrenome fosse Kissinger. Hoje, Israel e Arábia Saudita estão discutindo termos de paz, de modo discreto. Os sauditas querem a ajuda de Israel com o Congresso americano para conseguir um acordo de segurança de longo prazo, um programa de energia nuclear civil e acesso às armas mais avançadas dos EUA —em contrapartida pela normalização das relações da Arábia Saudita com Israel.

Os israelenses ficam me dizendo que, se ajudarem a entregar esses bens dos Estados Unidos, os sauditas vão normalizar relações com Israel sem exigir quaisquer concessões de Tel Aviv aos palestinos.

Não acredito nisso. Com base em conversas com um alto funcionário saudita, eles ainda não decidiram quanto vão exigir que Israel faça em relação aos palestinos em troca de abrir as relações —mas não será zero. Hoje, a Arábia Saudita é muito competitiva com os Emirados Árabes Unidos, e é quase certo que Riad vai querer receber mais de Israel do que os EAU conseguirem pela assinatura dos Acordos de Abraão.

Nunca pensei que eu escreveria isto, mas lá vai: a Arábia Saudita pode não estar interessada na história judaica, mas a história judaica agora está muito interessada na Arábia Saudita. Isso porque as condições que a Arábia Saudita exigir do Estado judaico em troca da normalização terão um impacto enorme sobre a possibilidade de Israel continuar a ser um Estado judaico e um Estado democrático.

Os sauditas podem consolidar a permanência da coalizão extremista de Netanyahu no poder por anos —ao entregar a Bibi o prêmio máximo das relações diplomáticas com Riad— sem quaisquer concessões israelenses aos palestinos na Cisjordânia. Mas isso provavelmente encerraria Israel em um apartheid.

Ou os sauditas poderiam exigir concessões de Israel aos palestinos que preservassem a possibilidade de uma solução de dois Estados —e a esperança de que Israel pudesse continuar a ser tanto democrático quanto judaico—, forçando Netanyahu a optar entre seus aliados extremistas que querem a solução de um Estado apenas ou fazer história, abrindo relações com a Arábia Saudita.

Biden e as autoridades americanas estão mais bem posicionadas que ninguém para moldar o resultado dessas discussões. O secretário de Estado Antony Blinken disse que pretendia conversar com líderes sauditas durante a visita a Riad, sobre a possibilidade de normalização dos laços com Israel.

Acompanhe a evolução dos fatos neste espaço.

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