Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

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Crianças voltam ao mundo real após pandemia mais ansiosas e dispersas

Jovens estão enfrentado dificuldades no convívio social com maior desinteresse por si e pelo mundo à sua volta

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Minha neta Alika, de quatro anos, nos últimos dois sofreu muito com a pandemia. Penso que ela teve uma espécie de surto depressivo e não sabia bem expressar os seus efeitos, apenas apresentou um comportamento irrequieto acima do normal, muitas vezes agindo de forma agressiva –não somente com a mãe, mas também como o irmão, o Zion, então recém-nascido.

O processo de recrudescimento do coronavírus no Brasil, especialmente em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, onde ela mora, nos fez entender de fato o que realmente a angustiava, a falta de contato com os coleguinhas da escola e o confinamento repentino. Ela passou a viver numa bolha e não entendia o por quê.

Reclusa em casa, do dia para a noite, ela, uma criança, não entendia bem a razão do confinamento, palavra que ainda não está no domínio do seu dicionário vocabular.

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Crianças brincam na escola de educação infantil Tutto Amore, na zona leste de São Paulo, durante o primeiro dia de volta às aulas após o isolamento imposto pela pandemia de Covid-19 - Rivaldo Gomes - 26.jan.21/Folhapress

Desde o início do ano Alika está de volta para a escola. Aquela natureza serena, brincalhona, festiva, que sempre a caracterizou, voltou num passe de mágica, ao contrário do que vimos entre meados de 2020 e o segundo semestre do ano passado.

Esse comportamento da minha neta reflete bem o que podemos esperar dos comportamentos das crianças e jovens daqui para a frente. É um efeito que permanecerá em seus corações e mentes. Mas não é só isso.

O mundo real voltou, mas não é mais o mesmo que conhecíamos —é outro. Ele está diverso, estratificado, fragmentado em retorcidas emoções e memórias dolorosas de orfandades e abandonos.

Eu estou falando de saúde mental e seus efeitos, o quanto de ansiedade e depressão vêm em forma de inquietação e dispersão, afetando a concentração, via estudos escolares, e o estado de espírito, na forma de desinteresse por si e pelo mundo à sua volta.

Os ambientes se tornaram estranhos para a maioria desses jovens a que estamos nos referindo. A distância de quase dois anos provocou uma dificuldade de comunicação presencial. Há jovens ainda usando máscara facial, como comportamento preventivo, sob o reflexo do medo causado pelos efeitos desastrosos da Covid-19. Outros jovens, não: estão numa fase de querer se adaptar à nova realidade. Isso também induz as formas de cumprimentar uns aos outros –o abraço afetuoso, o aperto de mão, o beijo no rosto, o andar em grupos, tudo isso hoje representa algo bastante simbólico e desafiador.

A volta às aulas tem sido tóxica para muitos deles. O ritmo não é mais o mesmo, e realmente não tem como ser. Com isso os conflitos se tornaram mais frequentes e atingem a maioria dos jovens. Além do mais, os jovens dão sinais de não estarem "prontos" para o retorno às salas de aulas, assim como os professores —e demais profissionais da educação— demonstram também não estar "preparados" para receber esse aluno no novo normal –porque, tanto para um quanto para outro, tudo é novo, tudo está diferente.

Tudo isso porque crianças e jovens, como a minha neta Alika, se conflitaram com a delimitação de espaços. Em casa, conviver mais tempo com os pais, irmãos e outros membros da família –não necessariamente parentes—, muitas vezes em ambientes contíguos e inadequados, acrescidos de problemas conjunturais causados pela crise sanitária, tornaram as coisas bem mais difíceis.

Em muitos lares, jovens presenciaram situações de violência, como briga do casal ou entes, diminuição de horas de sono, precariedade de alimentação –por seu excesso ou redução—, perda de renda familiar, automedicação indiscriminada, medo de morrer ou a perda de alguém muito próximo.

Esses são sintomas que acusam hoje os traços do comportamento mental de muitos jovens que, a todo custo, procuram voltar à normalidade da vida e dos seus antigos afazeres.

E estamos falando aqui de jovens cujas famílias ou entes próximos podem proporcionar algum conforto a bens materiais, que incluem, além de tudo, atendimento profissional em caso de apresentação de algum tipo de distúrbio.

Precisamos ficar atentos a uma grande faixa da população que, em função de baixa renda e outras precariedades materiais, não consegue auferir os mesmos benefícios. Referimos aqui a uma parte considerável a que falta, sobretudo, acesso a políticas públicas e garantias de bem-estar social. Para essa faixa populacional, precisamos pensar em um atendimento profissional –uma espécie de SUS da saúde mental— que atenda um público-alvo cada vez mais numeroso, incluindo pessoas pobres e pretas, de periferias, favelas ou subúrbios.

Não é fácil vivenciar esse processo diante de dificuldades materiais gritantes —na pandemia constatou-se que muitas famílias nem sequer tinham água potável em suas casas. Nesses casos, a higienização no período grave epidêmico ficou relegada a segundo plano, o que levou muitos ao desespero. Tudo isso só provocou o aprofundamento da desigualdade, afetando, ainda mais, grupos já excluídos ou postos à margem, historicamente sem serviços básicos ou específicos.

No Brasil, e em boa parte do mundo, muitas pessoas tiveram receio de tomar a vacina contra a Covid-19 mas, estranhamente, não têm medo de contrair o vírus e se expõem sem máscara pelas ruas ou em ambientes fechados e com enorme quantidade de público.

Todas essas situações precisam ser reconhecidas agora que estamos atravessando uma espécie de normalidade. A Covid-19 não acabou, é certo, ela tem se manifestado de maneira sazonal, com estágios de baixa e elevada escalas de contaminação e mortes. Isso não quer dizer que não precise ser tratada com cuidado e atenção. Obviamente, o não abandono do uso de máscara e de higienização das mãos, com água e álcool em gel, são partes dessas precauções que precisam continuar sendo sugeridas e seguidas.

Dados do Ministério da Saúde coletados no primeiro ano da pandemia mostram alguns impactos na saúde humana aqui no Brasil. Para 86,5% das pessoas consultadas na pesquisa, houve elevado aumento de ansiedade. Já para ao menos 45,5%, houve elevação de transtorno por estresse "pós-traumático" e, em 16% do grupo, o de "depressão grave. O Ibope, no mesmo ano, detectou casos de ansiedade em mulheres, em diversas regiões do país. O uso de medicamentos de todos os tipos cresceu até 38%.

Esses sintomas dão indícios do quanto a pandemia paralisou as pessoas pelo medo da morte ou pela perda da qualidade de vida.

Uma criança como a Alika, no entanto, não tem recursos para expor o que sente de forma precisa. Para ela, ou para qualquer pessoa adulta, de certa maneira, a pandemia é um processo que não passou totalmente incólume.

Ainda teremos que aguardar diagnósticos mais precisos sobre os efeitos da pandemia na saúde mental da população brasileira e de outros povos. Isso pode levar décadas para acontecer. Estudos recentes mostram ângulos novos de leitura dos males causados pela gripe espanhola, que ocorreu entre nós há cem anos, matando cerca de 50 milhões de pessoas no mundo.

Na época, o mundo ainda vivia os efeitos da depressão da Primeira Guerra Mundial, que findou em 1918. Sem meios de comunicação que temos hoje –como rádio e televisão, redes sociais, potentes veículos de integração entre as pessoas–, o medo de pegar a doença, então sem cura, também atingiu mentalmente milhares de brasileiros, levando muitos a óbito por causa disso.

É preciso reforço, termos muito cuidado, sobretudo com os jovens, que andam cada vez mais alheios ao processo informativo, seja televisão ou jornal impresso. Saber como lidar com eles, o que falar com eles, é dado precioso nesse retorno à normalidade.

Conheço alguns jovens que não leem jornais nem assistem a programas televisivos, por falta de interesse ou por excesso de ansiedade. Boa parte vive apenas interligada aos celulares ou notebooks, conectadas o dia inteiro via internet. Qualquer canal comunicativo é capaz de transmitir uma péssima informação. Portanto, se os veículos mencionados são ruins ou geram desconfiança naquilo que querem veicular, o que nos chega pela via digital também não é totalmente confiável.

Isso leva à propagação dos conhecidos negacionismos e fake news, confundindo ainda mais a cabeça daqueles que têm pouco conhecimento ou estão em dúvida sobre a realidade que os cerca.

Quis dividir algumas preocupações que me impactaram ao lembrar os dias recentes em que tive contato com Alika, na casa da mãe. Ela voltou para a escola, como disse, voltou a conviver com os seus amiguinhos. Acorda cedo, toma o café da manhã e, tudo isso realizado, começa a se preparar para sair de casa, pegar o transporte e estudar. A diferença é que anda fazendo tudo isso horas antes do necessário. Sua ansiedade continua grande. Seu estado mental idem. Os mínimos cuidados que temos com ela é apenas a ponta do iceberg do que nos aguarda para o restante do Brasil.

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