Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Veny Santos

Carnavais longe das avenidas tiram desfiles e blocos da televisão

Só se falava da festa, dos sambas-enredo, de tudo o que sonhavam em ver ali, naquele Rio de Janeiro que não era deles

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Essa retomada de desfiles me fez lembrar do ontem. Como nas crônicas do passado, resgato as peças pretéritas que vestiriam bem o hoje. Fantasias que ainda servem na realidade. A lembrança de um primeiro Carnaval distante da exuberância televisionada mostrou-me que a festa do povo também acontecia nos confins de um bairro apegado à sua própria simplicidade.

Há uma personagem marcante. Sempre há. Alguém que tentou —com o que tinha e o que não tinha— dar aos seus um pouco de folia. São muitos os carnavais. Entre eles, os que aconteciam em cantos que quase ninguém reparava. Quase. Zilda morava em Duque de Caxias, Rio de Janeiro, escondida em algum ano no final de 1990. Naquele fevereiro, receberia seus sobrinhos-netos, ou só sobrinhos, afinal, era ela apenas Tia Zilda. Nada de avó.

Bloco Urubó no largo da matriz no bairro da Freguesia do Ó, na zona norte de São Paulo - Ernesto Rodrigues - 26.fev.20/Folhapress

Na casa, tudo pronto. Quartinho arrumado, ventiladores espalhados, feijão preto para a semana, farinha, mas faltava o frango do pirão. Suava sem ser percebida. Tão ereta e alinhada quanto sua coluna era a postura perante os outros. Rígida, alta, dura, de falar pouco e amar muito —em silêncio.

Calhava de ser Carnaval. Os desfiles marcados a deixavam inquieta. Sabia que as crianças estavam animadas, só não como evitar desapontá-las. Em algum momento, teria Zilda que lhes contar uma das muitas verdades que a vida ensinou.

Na rodoviária, correram os dois irmãos. Não completaram nem sequer década de anos e dentes permanentes. Um abraço nas pernas compridas da tia veio com o alívio de terem saído do ônibus pelando e da São Paulo sem verão de vento fresco. Os olhos bebiam todo o novo cenário a goladas. A boca, aberta, nem piscava palavras.

Assim foi a chegada. O mais velho ficou marcado pelo suco de goiaba que Zilda lhe comprou. Tudo era diferente. Tudo marcava. Não aguentou e disse o menino: "Tem fantasia de Carnaval?". Rígida, alta, dura, falou pouco —"só depois". Não disse do quê.

Dia seguinte e nada do frango. Precisava dele para o almoço. Chamou o sobrinho para lhe acompanhar ladeira acima até a granja. As ruas pareciam ter sido banhadas em petróleo. Escorria no desgaste das paredes a saturação da vida dura e insistente. Não se surpreendeu o menino. De onde veio também havia cores assim, marcadas sobre superfícies duras tal qual aquela que estampava sua pele e de Zilda. Na luz do dia foram ambos ouvindo a sinfonia das lojinhas que disputavam qual seria a "música do carnaval" daquele ano.

O garoto perguntou, já sem receio da resposta, se irão todos aos desfiles da televisão, afinal, estavam no Rio de Janeiro. Tia hesitou por alguns segundos e disse que à noite veria se era possível. Continuou o menino a se entreter com os cantos das ruas e aparelhos de som.

Comem, tomam banho de bica no fundo do quintal e são observados por Zilda. Pensativa, organizava na cabeça o emaranhado das ideias para não deixar o sobrinho sem resposta. Tirou um dos grampos do cabelo, mordiscou preocupada, colocou-o novamente tentando prender alguma justificativa que disfarçasse a verdade. Ajeitou o lenço, olhou para as mãos e avisou que iria tomar seu banho.

Sai outra. Pega a bolsa, e deixa um rastro de "vou ali e já volto". Ao escurecer, os meninos se deitaram no chão da sala buscando algum refresco. O ar do ventilador se mantinha quente, cozinhando-os. Só se falava do Carnaval, dos carros, desfiles, das plumas, dos sambas-enredo, de tudo o que eles sonhavam em ver ali, naquele Rio de Janeiro que mais parecia a Vila União de sua zona leste paulistana. Longe, mas perto, igual e diferente, dividido, esse Rio, entre a ladeira da granja e a Sapucaí. O menino mais velho continuava a crer que sua tia chegaria já pedindo para que se arrumassem, com fantasias nas mãos. Elas seriam grandes, coloridas, volumosas tais quais sonhos costurados e lantejoulados. A tia chegou. Fitaram-na e ela soube que não havia mais como adiar as cinzas antes mesmo da quarta por vir.

"Não vamos ao desfile, fio. É longe, caro, muita gente, não tem como", pausa ela, para continuar, em seguida, na tentativa de explicar como o de hoje era diferente dos carnavais de sua época. "Acontecia na rua mesmo, ou nos salões. Se passar algum bloco, levo vocês até o portão para ver". Escureceram-se todos.

Zilda viveu uma vida de quereres que se renovavam a cada Carnaval. Pouco conseguiu realizar. Na sua festa solitária, cujas esperanças iam se despindo das mais diversas fantasias, celebrava ao menos ter como assistir, longe, ali do lado, àquele momento em que o povo parecia merecer uma celebração só sua. "Que povo?", pensava ela. Ver um desfile daquele tamanho não cabia em sua realidade. Fazia de si, então, a alegoria da qual ao menos um pedaço de folia ela merecia tirar. Não para si, mas para os seus.

Mais um frango para mais um pirão. Sábado, saiu sem os grampos e lenço. Solta, conhecia Duque de Caxias como as linhas de suas mãos. Das palmas brancas, traçou seu mapa particular. "É ali que sempre tem". Virou a esquina, andou para mais próximo da avenida e avistou uma montanha colorida de fantasias carnavalizadas, exaustas, amanhecidas por obrigação. Pegou um elmo verde, com longas penas, espelhado, e saiu.

Era ela apenas Tia Zilda, mas agora com o Carnaval nas mãos. "É do povo."

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