Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Rei do Crime, mais que um personagem, é o arquétipo de quem corrompe o poder

Sufoca ler as páginas em que o vilão vence com folga por ter compreendido as estruturas políticas

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Uma origem marcada pela incompreensão. Por parte dos outros, evidentemente. De si, sabia muito. Tinha mãe carinhosa e superprotetora. Pai rígido e distante das afetividades. A escola foi um inferno. Sofria ataques por ser quem era —diferente dos demais, seja pela aparência ou pela inteligência que o destacava.

Era de natureza invertida porque via no futuro o reflexo do que presenciava no presente. O amanhã convida a viver outra história, mais densa, profunda e que, finalmente, caber-lhe-ia. Nasceu contrário e cresceu contrariado.

Revista Marcel legado Demolidor Foto; Reprodução *** Local Caption *** Moro DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM
O personagem Rei do Crime em detalhe de HQ do Demolidor - Reprodução

Em 1967, Stan Lee e John Romita apresentaram ao mundo sua nova criação: um personagem que incorporaria o paradigma estratégico, vingativo e criminoso da máfia. Wilson Grant Fisk, cuja aparição se deu na edição 50 de "Amazing Spider-Man", foi desenhado nas mesmas linhas que os personagens do ator Sydney Greenstreet, conhecido por integrar filmes como o clássico "Casablanca". Traços físicos e psicológicos das interpretações do ator hollywoodiano demarcaram aquele que viria a ser conhecido popularmente como Rei do Crime nas páginas dos quadrinhos.

Não por acaso, carrega em si diversas complexidades que, de longe, vão além da proposta de entretenimento das HQs. Tal personagem também expressava características de arquétipos identificados na realidade concreta. Seja nos grandes centros urbanos, no campo ou nas periferias, há sempre aquele que é conhecido por manejar com maestria incomum —quase sobrenatural— uma arma letal: a corrupção.

Começa querendo justiça para si. Na verdade, busca vingança. Estuda seus alvos de dentro para fora. Integra suas instituições, mostra-se obediente, pacífico, até mesmo disciplinado. Investe no desenvolvimento das qualidades físicas porque sabe que delas precisará. Destaca-se. Assim se mantém, oculto, mas destacado, com uma mente nebulosa, nublada que, às vezes, deixa escapar no olhar vidrado a gana pelo golpe certeiro.

Reúne alguns que se submetem ao seu gênio sedutor. De fala pouca, mas pontual, conduz feito "condottiere". Faz o seu enquanto diz fazer também o dos outros. A causa dos outros —os que o servem. Uma vez blindado por carcaças que não a sua própria, lança-se à subversão. Ameaça, mas não ataca o fronte, mira a nuca. Nos bastidores, começa a corromper todos os cantos possíveis, embolorando suas ações, devorando seus princípios, subvertendo-os a meras ferramentas de trabalho sujo.

Wilson Fisk, o Rei do Crime, não possui superpoderes. Possui poder, puro e simples. Ao criar uma carteira de devedores, também formou seu exército de corrompidos. Não é preso porque comprou a polícia. Não é julgado porque apavorou a Justiça. Não é difamado porque quando a mídia tenta destruir sua imagem, parte dela —também comprada— desmente a verdade, tratando a mentira como fato.

Sufoca ler as páginas e mais páginas com os episódios que conferem ao vilão vitória folgada sobre adversários. Isso porque ele, o Rei, o messias dos criminosos, o chefe, o "costas-quentes", o patrão, o capitão, o indestrutível, imbatível e incompreendido construiu sua própria El Dorado sob as estruturas políticas que compreendeu e aprendeu a manobrar.

Em certo momento da trajetória do personagem, ele se candidata a prefeito de Nova York após ter prestado favores à população. Mesmo com estima alta, para garantir que venceria a disputa manipulou as eleições. Fosse na primeira ou na última instância de poder, sua presença se fazia mancha e lembrava a todos de que praticamente ninguém era limpo o bastante para a Wilson Fisk não dever.

Megalomania era uma de suas facetas, assim como um amor obsessivo por sua esposa, companheira também de crimes, Vanessa Fisk. Entre explosões, membros da máfia como funcionários públicos e empresas de fachada, o Rei do Crime acreditava que sua política mafiosa estava acima de tudo, e ele acima de todos. Falhou, muitas vezes, e teve que lidar com a miséria de si mesmo.

Um arquétipo, um padrão que se repete, uma carapuça social, política e moral detectável. Considerar como este personagem foi construído e suas atuações dentro do papel que lhe foi conferido é, também, uma forma de se pensar a realidade como simulacro de outro simulacro. Verdade desmentida que faz da mentira um fato.

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