Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Veny Santos

Juntos, sobrevivemos a um 2023 de agruras, com golpismo e deslizamentos

Apesar disso, a vida teve momentos bons, e escrever estes capítulos realçou a diversidade para a sobrevivência

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Escrevi o ano de 2023. Como um texto, fluiu entre seus períodos os sentidos que guiaram leitores e leitoras pelas conversas de calçada, sala, laje, cabeleireira, mercadinho, bar, rua, ponto de ônibus, feira, fila da lotérica, do SUS, que pude conversar.

Desde minha primeira introdução nesta coluna, marquei meu tópico frasal, diversidade como estratégia de sobrevivência. No capítulo deste ano, muito se registrou neste sentido.

0
Ataques do 8 de janeiro em Brasília - Pedro Ladeira/Folhapress

Impossível não recordar do atacado janeiro que apanhou de uma parte da classe média rendida ao golpismo. Na incapacidade de imaginar, bestializou-se. Do rancor se fez o crime, e agora pagam por seus atos. Tão impossível quanto esquecer seria não escrever e registrar no tempo e espaço o ocorrido.

E por que escrevemos? Num convite à reflexão, espalhou-se o emaranhado de respostas em direção ao permanecer na história, com o saber olhar para os cantos que ninguém vê. Um deles se encontrava nos bares das periferias, ao fundo, com mirar apático.

Depressão, ansiedade, homens marcados pela pobreza e suas faltas. Gente sem condições cuja vida era soterrada, de catástrofe em catástrofe, pelo descaso. Gente que parece ter sido feita para morrer tragicamente, como nos deslizamentos ocorridos no litoral de São Paulo. Cantos sufocados.

Em situações assim o que resta são as pessoas e seus pactos de sobrevivência. Seja para reconstruir uma casa ou não deixar que a sua própria —ou alugada— destrua os laços criados entre sobreviventes.

Amigo de mulher, amizade que assopra ferida, estratégia contra misoginia e homofobia. Denúncia, injustiça, trabalho escravo em pleno século 21, nós por nós, "Condenados da Terra" ainda real e intenso. Dos livros às músicas, denúncias foram feitas no resgate das memórias do underground de periferia. Letras críticas, uma cena formada por bandas do povo das vilas, dos jardins —os populares, não os elitistas.

Igualmente não cairá da memória, depois de quatro anos, o quanto a política esteve presente no cotidiano. Negá-la é, também, o fazer político. Não foi assim com a pandemia? Ao lembrar seu início, quando, em maio, foi declarado pela OMS o fim da emergência de saúde pública em relação à Covid-19, não se pôde ignorar todo o negacionismo descarado.

Sobre outra pandemia também escrevi. Mais do que escrevi, li e aprendi com um sobrevivente de extraordinário lirismo. Ele, que também foi vítima dos duros tempos de surto de HIV no mundo, abriu seu coração para falar do irmão, de si, de uma gramática do choro que regra as maneiras várias do soluçar pela dor tanto quanto pelo amor. João Silvério Trevisan, nas suas diversidades, é do tipo que assusta o "deus do ódio" —aquele alguém com medo.

Dez anos desde as manifestações de 2013 e o rosto de Rafael Braga quase não foi resgatado nas tantas reportagens revivendo o período. Regiões periféricas da cidade privadas de um desenvolvimento socialmente horizontal no Plano Diretor. Comida —depois dos anos de ossos no prato— retornando aos poucos, com afeto, como ensinou José e tantos outros heterônimos reais das quebradas.

Dediquei linhas a eles, Rafael, José, Venâncio, Nelson, cada morador de vila. Eles, com suas existências, muito nos ensinam importantes lições.

No Brasil majoritariamente negro —ainda que tenham "dificuldade" em afirmar isso e prefiram enfocar as questões exclusivamente pigmentárias—, do preto retinto ao mais claro, também redigimos juntos, eu e vocês, as cartas para quem de nós ainda vive.

Nelas, destacamos não só casos mensais de racismo, mas também as quebradas inteligentes. Perguntamo-nos o que seria do mundo se ele retratasse nosso imaginário —imaginário este ameaçado por um genocídio cognitivo—, e na falta de luz dentro e fora das ideias, na penumbra não ficaram nem os bichos de quebrada.

Juntos, eu, vocês, nós sobrevivemos. Apesar das agruras, a vida real teve seus momentos bons como os da internet de meus pais, uma na qual o que importa é, literalmente, o que importa. Escreverei 2024. E como ele cantos outros.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.