Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Veny Santos

A literatura como o salto para escrever com os medos do ser, sem o medo de ser

A liberdade de escrever sem a pretensão de ser lido é como saltar sem peso, onde a queda é macia antes da colisão

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Enquanto a chuva desaba do lado de fora, em seu quarto que só lhe cabe as ideias entre paredes apertadas sob o teto baixo da mente, o escritor se pergunta se a condição para bem escrever é o mal viver.

Se, realmente, como outros escritores e escritoras, jornalistas e críticos disseram por vezes: é o sofrimento elemento potente quando se trata de dar à escrita criatividade e profundidade, permitindo que o leitor integre uma atmosfera de vulnerabilidade que oscila entre a sutileza de tirar os pés da razão e o peso de firmá-los quando a realidade mostra que dela não se passa.

Além desta questão agulhando sua mente, também paira a preocupação com o telhado. A tempestade é o que é —forte. Se começar a entrar água em suas ideias, conseguirá não se molhar? Um medo —de tantos.

Quando enchia cadernos, o hoje escritor ontem era apenas alguém que não sentia gosto em falar demais, relatar demais, oralizar desabafos com os outros. Próximos, distantes, medianos em suas relevâncias, mas sempre outros.

Ao misturar desilusões a anseios por quadros que retratassem o que via e sentia, apenas depositava nas folhas cores todas dos sentimentos que não compreendia. Juntas formavam o breu.

Daquela complicada relação entre o pensamento que se manifesta no físico do corpo, apertando o peito, gelando a boca do estômago, secando a da cara, torcendo a garganta como se roupa lavada fosse e a falta de conhecimento sobre as dores psíquicas —as chagas da mente—, surgiam composições contando para si mesmo tudo a respeito do inevitável sentir.

Estendidas as ideias entre linhas, penduradas no varal das certezas improvisadas, ventavam sem compreender, ainda, as dores do secar. Só não queriam permanecer molhadas.

Cena do filme 'Passagens', de Ira Sachs
Cena do filme 'Passagens', de Ira Sachs - Divulgação

A liberdade de escrever sem a pretensão de ser lido se assemelhava ao saltar sem peso por crer que a queda era macia antes da colisão, tal qual o flutuar a preceder os pés no chão. Escrever sem ser lido, algo como o caminhar até o sonho, sem se preocupar se, ao chegar, pesadelo teria. Pesadelo seria.

O que sempre buscou, talvez, o escritor em seu quarto, era uma forma de entender como são paridas as tempestades. A busca lhe rendeu mais um livro que já começou a ser redigido, sem ideia de quando será concluído. É o tal saltar sem peso, no sentido contrário, indo em direção ao alto nublado que ainda oprime o elucubrar tanto quanto o medo de goteira.

A todo momento, capta-se literatura. Certas vezes parece até mania. A tudo ler, interpretar, assimilar, converter em alguma pergunta a ser decifrada em texto ou resposta que possa ser dissecada até que, pelo benefício da dúvida, fuja à conclusão e se mantenha eternamente investigada. Eternamente em salto contrário que, em vez de cair, parece ascender.

Basta um simples diálogo de filme para despertar no escritor sabor qualquer sem gosto verdadeiro no palato do imaginário. Azedume, amargor ou a euforia desmedida que faz perder a mão quanto ao tanto de epifanias que se pode acrescentar a um único momento. Vezes em que o escritor perde o gosto.

"No que você está trabalhado agora?", perguntou um dos homens sentados à mesa. "Eu sou o editor de ficção para uma revista literária", respondeu o outro que, recentemente, havia publicado um livro de grande sucesso.

"Mas qual é o seu próximo livro?", continuou o primeiro. "Não estou planejando escrever outro livro", respondeu o segundo.

Veio então certa indignação da parte do perquisidor: "Por que não? Você tem sido um grande sucesso".

E a resposta veio, dissecada como esperava pelo aqui escritor, ali feito de espectador da prosa. "Não, não estou interessado em me ver como escritor. Eu só gostei de escrever este livro [o de sucesso] porque naquele tempo eu era completamente anônimo e as pessoas não sabiam que eu existia. Então me senti livre".

Esta conversa consta no filme "Passagens", dirigido por Ira Sachs, e lançado em 2023. Interessante obra. Um simples diálogo para o espectador, um salto para o escritor.

A chuva parou. Não teve goteira. Mesmo assim escreveu.

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