Recentemente dei uma entrevista no programa de Mário Sérgio Conti, no qual usei a palavra denegrir para me referir a alguma das usuais bobagens ditas por Bolsonaro.
Na sequência, fui interpelada educadamente por um rapaz negro, que me alertava sobre o uso do termo. De pronto concordei que não deveria tê-lo usado, afinal, denegrir é um termo pejorativo e remete ao escurecimento da pele pela miscigenação entre brancos e negros. A crítica não dizia respeito a não usar o termo, mas a não usá-lo negativamente. Sugeria meu interlocutor que ele fosse aplicado positivamente. Há controvérsias sobre o tema, mas, mais do que sair à caça de termos politicamente incorretos, cabe aproveitar a oportunidade para refletir.
Os estudos do genoma brasileiro encampados pela USP (2017) revelam uma sensível diferença entre a autodeclarada ascendência do brasileiro e sua mistura genética real. O que os olhos não veem o coração desmente, e seguimos nos dizendo mais brancos do que de fato somos para sermos aceitos pelos outros e por nós mesmos.
Afinal, ser tido como “branco no Brasil” (revejam o programa “Tá no Ar” de 2017) funciona como um passaporte para ser bem recebido em shoppings, restaurantes, clubes, universidades, aeroportos. Vale perguntar com quantos psicanalistas negros convivemos e quantos estão em nossas bibliografias? Ainda assim, o brasileiro continua negando a existência de um racismo estrutural, insistindo na ideia do acontecimento isolado.
Há 15 anos promulgadas, a lei 10.639/2003 (que torna obrigatório o ensino sobre história e cultura afro-brasileira nos currículos das redes de ensino) e a lei 10.645 (que fala da obrigatoriedade da temática história e cultura afro-brasileira e indígena) encontram enorme dificuldade de serem cumpridas. A justificativa dos pais, aceita por algumas escolas, é que trazem informações indesejáveis para os alunos por citarem as religiões de matrizes africanas. O curioso é que a ladainha sobre católicos, jesuítas, protestantes que ouvimos durante anos em sala de aula para explicar a chegada dos europeus no Brasil não costuma ser vista como um problema.
Não é difícil um aluno se descobrir negro ao longo de cursos que discutam o racismo, pois se trata justamente da questão de reconhecer-se e ser reconhecido. Será isso o que tanto temem essas famílias, muito frequentemente evangélicas e negras? Basta lembrar da dificuldade dos brasileiros entenderem que a grande quebra de paradigma do casamento de Meghan Markle com o príncipe Harry é o fato de ela ser negra, embora sua pele seja clara. No Brasil, o colorismo faz escola.
Eu venho de uma família que se vê branca, oriunda da migração de italianos no começo do século 20. A nova geração mudou esse quadro: é mais visivelmente brasileira, pois sua recente miscigenação diminuiu a ambiguidade que nos fazia parecer eternos estrangeiros. Estamos finalmente denegrindo nossa família como os demais brasileiros vêm fazendo há 500 anos.
Resta saber se isso, que define a própria formação de nosso país, é motivo de vergonha ou de orgulho para cada um de nós. Desse reconhecimento emergirá a possibilidade ou não de darmos valor a esse sentimento intangível que chamamos brasilidade e de nos tornamos cidadãos de uma vez por todas.
A considerar nossa escolha feita para presidente, estamos perdidos. Se considerarmos os movimentos cada vez maiores de jovens assumindo com orgulho suas múltiplas ascendências, estamos apenas começando.
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