Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli

Bem-vindos aos anos 20

A culpa pela recessão pode ser do PT, mas por que saímos trucidando o vizinho?

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O sujeito chega na análise pedindo para que o analista confirme a loucura de cônjuges, chefes, filhos ou qualquer outro a quem atribui seu mal-estar. As entrevistas iniciais, das quais depende o início do processo, devem levar o queixoso a se incluir na conta que imputa aos outros. Caso contrário, não se tratará de uma análise, mas de um guichê de reclamações. A retificação subjetiva, que se dá nesse processo, é dolorosa e libertadora. Dolorosa porque não poderemos mais varrer o lixo sob o tapetinho alheio impunemente, libertadora porque temos a chance de dar um destino melhor ao nosso sofrimento.

O Brasil não passou nas entrevistas iniciais. Continua achando que o problema são os pretos, os pobres, as mulheres, os gays, o PT. A culpa pela recessão pode ser do PT, mas por que saímos trucidando o vizinho? O desastre econômico, do qual todos fizemos parte, é respondido com ódio aos costumeiros outros —cada povo tem os seus— revelando a face do mal em nós.

Cena do especial de natal da Netflix 'A Primeira Tentação de Cristo', feita pelo grupo Porta dos Fundos
Cena do especial de natal da Netflix 'A Primeira Tentação de Cristo', feita pelo grupo Porta dos Fundos - Divulgação

Já se passou um ano desde que o impensável aconteceu: o discurso reacionário tomou o poder, levando cidadãos a perderem o pouco constrangimento que tinham em ser cruéis. As suásticas saem do armário com mais facilidade do que será encontrar brasileiros "arianos" para empunhá-las. Venceu o ódio do brasileiro pelo Brasil e sua aspiração por ser outro que não si mesmo. 

Para compensar a violência estrutural, que o voto perpetua, surge o elogio à caridade. Jacques Donzelot, em "Polícia das Famílias" (1977), já denunciava a filantropia como dispositivo de sujeição. Algo como enviar flores à esposa, depois de dar-lhe a surra habitual

Outra forma de "ser bom" é salvar a pátria e os valores cristãos jogando coquetel molotov em artistas que encenam um Jesus inocente, mas gay —mesmo grupo que encenou um Jesus escroto, mas heterossexual, em especial natalino anterior, e que não sofreu atentado por isso. Moral da história: para a família brasileira cristã é melhor ser canalha do que gay. 

As leis não mudaram —ainda—, mas os efeitos do discurso racista, misógino e anti-ambientalista já são contabilizáveis, mostrando como a licenciosidade vem do exemplo. O Brasil pega fogo nas queimadas florestais, nos atentados obscurantistas e no queima à roupa da Polícia Militar. Em resumo, foi dada a largada para a temporada de caça e está aí o imperdível "Bacurau" (2019) de Kleber Mendonça, para denunciá-lo.

Talvez nos sirva lembrar dos outros anos 20, nos quais um mundo arrebatado pela 1ª Guerra Mundial recebeu a obra-prima "Muito Além do Princípio de Prazer", de Sigmund Freud. Nela, o inventor da psicanálise dá sua guinada teórica propondo o conceito de pulsão de morte em contraponto à força de Eros. Para além do prazer, os sujeitos tenderiam à destruição. 

Não se trata de condenar a humanidade à violência e ao horror, mas de assumir que somos responsáveis por formas melhores ou piores de lidarmos com nossos conflitos estruturais, que incluem tendências amorosas e tendências destrutivas "sem as quais não criaríamos nada de novo". Sem assumir essa condição existencial, saímos por aí a destilar ódio em nome de Jesus e outras barbaridades. 

Freud se exilou em Londres, pois na Alemanha economicamente destruída, judeus, ciganos, deficientes, adversários políticos, artistas, homossexuais foram os bodes expiatórios da vez. Morreu em 1939, cercado de familiares e de amigos, nos deixando a imensa tarefa de nos curarmos do medo e do ódio a tudo o que soa estranho em nós e nos outros. Bem-vindos, anos 20!

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