Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli
Descrição de chapéu câncer

Médicos e a culpa pela morte

Demandas insanas e onipotentes têm adoecido profissionais de saúde

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Se quisermos ter uma ideia básica do que se espera dos profissionais da saúde na atualidade, sugiro o consagrado livro de Jean Clavreul "A Ordem Médica: Poder e impotência do discurso médico" (Brasiliense, 1983). Com prefácio do psicanalista Marco Antonio Coutinho Jorge, a obra discorre sobre a forma atual de entendermos o lugar da medicina, a impotência que decorre disso e a diferença crucial com a ética da psicanálise.

Outra forma mais simples de se aproximar da questão é assistir ao primeiro episódio da indigesta série "The Good Doctor" (Globoplay), na qual o protagonista é um jovem médico suposto autista savant (caricaturado como um sujeito com zero capacidade social e performance cognitiva estratosférica). A "pureza" do dr. Shaun, quando confrontada com a malícia, as limitações e as incoerências dos seres humanos comuns, faz do personagem o retrato do que se espera hoje dos profissionais de saúde.

O raciocínio exorbitante, que só dá "tilt" diante da complexidade dos afetos, cai como uma luva para as expectativas atuais, de que o médico funcione como uma máquina que conserta corpos às expensas da subjetividade —deles e dos pacientes.

Se a figura de outro renomado personagem do gênero, Dr. House (Netflix), era escancaradamente baseada em Sherlock Holmes —repleta de nuances e cinismo— agora trata-se de admirar o médico-computador. Ambos seriam supermédicos justamente porque capazes de abolir emoções, que atrapalhariam sua genialidade. Sonho de consumo de quem trata e é tratado, que revela nossa miopia diante da existência humana.

Pessoalmente, pretendo viver o máximo possível e com o máximo de saúde possível, contando com a medicina em todos os momentos que se fizer necessário e digno. Dou ênfase no "digno" que implica na escolha pessoal e intransferível de seguir ou não determinados tratamentos.

Comemoro a criação de vacinas, o controle de natalidade, os avanços contra câncer, HIV, e infinitas outras doenças que assolam a humanidade. A questão é que doença e morte não são passíveis de serem erradicadas como nossa cultura tenta vender, totalmente capturada pelo que o capitalismo tem de pior. Respondendo ao eterno anseio humano por driblar a morte, e sob falsas premissas, são realizados tratamentos cada vez mais invasivos, eticamente questionáveis e, obviamente, caros.

Na prática diária, o profissional é chamado a se responsabilizar pela existência da doença e da morte não como alguém que tenta fazer o possível para curar, aliviar a dor ou criar condições para um fim digno. Mas como alguém que deve se justificar e se desculpar diante da própria existência da doença e da morte. O anúncio de um óbito passa a ser entendido como fracasso do médico diante da onipotência do saber da medicina. Ele deve ter feito algo errado, uma vez que a medicina tudo pode.

Que as pessoas fiquem inconformadas diante de notícias ruins é absolutamente compreensível, mas que o profissional responda do lugar de quem poderia tudo curar, mas não o fez, é adoecedor.

Na formação do médico —de estrutura claramente militar— esses valores equivocados são reforçados, ao invés de duramente criticados, em nome de uma excelência que não se mostra real. Na pretensão de formar "Shauns" e "Houses" temos colhido uma geração de médicos deprimidos, ansiosos, drogaditos ou violentos. Sugiro o pedagógico "The Doctor", filme de 1991 estrelado por Willian Hurt —com o lacrimoso título de "Golpe do Destino"—, como singelo alerta para a atual doença da medicina em nossa cultura.

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