Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de "Criar Filhos no Século XXI" e “Manifesto antimaternalista”. É doutora em psicologia pela USP

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Vera Iaconelli
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Por onde o analista começa?

Como posso escutar no outro o que ainda não consigo escutar em mim mesma?

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As ofertas de trabalho costumam criar situações paradoxais para os iniciantes. Um dilema digno de mestre budista é aquele colocado pela exigência de experiência para a vaga, que só será adquirida se o candidato conseguir a vaga.

Na psicanálise, a questão do tempo para estar apto a atender sofre da mesma lógica. O que me permitiria tomar alguém em análise, se eu mesma me encontro em pleno processo analítico? Como posso escutar no outro o que ainda não consigo escutar em mim mesma?

Na medicina, após os anos de estudo teórico, existe o período de residência, no qual o aprendiz de médico passa por várias especialidades até que se decida por uma específica. Aí serão mais alguns anos no qual se afunilam os estágios e os estudos. Embora seja um percurso cheio de escolhas, ele é consagrado. Na psicanálise, o percurso é tão acidentado quanto autoral, o que nos dá a dimensão de um outro tipo de angústia envolvida no processo.

Psicóloga trabalhando com jovem deitado no sofá ou divã. Paciente tenta relaxar e descrever sentimentos
Nomad Soul/Adobe Stoco

Para começar, a avidez por atender pacientes não pode ultrapassar o desejo de escutar o próprio inconsciente. Caso contrário, se trata de uma impostura na qual você pede que o outro mostre o dele e usa o truque do "minha mãe me chamou" na hora de mostrar o seu. E não se trata de contar para o paciente seus perrengues pessoais, mas de aguentar o tranco de se manter na conta dentro de uma análise. Por que esse paciente me irrita, me dá medo, sono ou desejo? São perguntas que o analista faz a si mesmo, não ao outro. E responde em sua análise e supervisão.

No trabalho do analista pesará uma combinação única entre estudo, análise pessoal e supervisão da prática clínica, mas tudo isso só se sustenta sobre uma posição ética. E aqui não tem nada a ver com qualquer expectativa de comportamento superior ou moralista. Analista enche a cara, dá vexame, deprime, tem dor de cotovelo, enfim, a ideia de se tornar um modelo imaculado é de uma tacanhez antianalítica, só desculpada na idealização transferencial.

A ética aqui diz respeito a assumir uma posição perante o mundo que não compactua com qualquer tipo de exploração de si ou do outro. O primeiro passo para isso é reconhecer que somos opressores e oprimimos. Não para que isso nos sirva de justificativa cínica do tipo: "já que é estrutural, nada a fazer então". Mas para seguirmos buscando formas melhores e mais dignas de nos relacionarmos.

A ética que nos interessa parte do pressuposto de que estamos assujeitados a nossos inconscientes, ao mesmo tempo em que nos responsabilizamos inteiramente por seus efeitos. Isso significa que escolhemos lidar com a angústia não como algo a ser erradicado —meta maior da contemporaneidade—, mas, ao contrário, como matéria mesma do nosso ofício. Não apenas por acolhermos diariamente o sofrimento de inúmeras pessoas, mas por não nos eximirmos do nosso próprio.

Onde o bom senso dirá que é melhor "deixar quieto", o "crica" do analista pedirá que se fale mais sobre isso. Onde o sonho bizarro é só motivo de riso, o analista rirá sabendo que ele revela o mais verdadeiro de si.

Amigos e familiares não deixarão de nos acusar, com razão, de vermos questão em tudo, pois é exatamente o que fazemos. E somos pagos para isso, pois somos trabalhadores, como os demais, às voltas com impostos e aluguéis.

A diferença é que, como dizia Lacan, o inconsciente é o trabalhador ideal, nunca descansa. Assim também, aqueles que resolveram se dedicar a escutá-lo, mesmo quando não atendem, mantêm seu expediente. Não se trata de sair fazendo análise selvagem como denunciava Freud, ao criticar o uso anacrônico e descontextualizado da interpretação analítica. Trata-se de acompanhar os caminhos da angústia —afeto que não mente, segundo Lacan— ao invés de seguir o senso comum, que busca eliminá-la.

Anos de estudo e análise são imprescindíveis, mas, infelizmente, não garantem que o analista se comprometa a enfrentar a paixão pela ignorância denunciada por Lacan. Volto a insistir: analista que não reconhece no outro o próprio miserê existencial ainda não entendeu do que somos feitos.

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