Plataformas de internet estão destruindo a democracia, diz Nobel da Paz

Jornalista Maria Ressa diz que sociedade brasileira vai ter que se engajar para evitar que Bolsonaro desacredite processo eleitoral

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Nova York

As plataformas de internet acabaram com a realidade compartilhada e estão destruindo a democracia, alerta a jornalista filipina Maria Ressa, vencedora do Prêmio Nobel da Paz de 2021. Cofundadora do site Rappler, ela é alvo de diversos processos e chegou a ser presa em 2019 pelo governo de Rodrigo Duterte após uma reportagem.

"Os fatos são entediantes, eles não se alastram —é por isso que a estrutura de incentivos das plataformas de mídia social está completamente errada", diz em entrevista à Folha.

A vencedora do Prêmio Nobel da Paz em 2021, Maria Ressa, concede entrevista durante o dia mundial da liberdade de imprensa, em Genebra.
A vencedora do Prêmio Nobel da Paz em 2021, Maria Ressa, concede entrevista durante o dia mundial da liberdade de imprensa, em Genebra. - Fabrice Coffrini/AFP

Ela argumenta que, nesse contexto, cada pessoa vive em seu feed de notícias personalizado, e o que ganha maior alcance são as mentiras e discurso de ódio, e não a verdade.

A jornalista adverte que não é possível haver integridade de eleições, se não há integridade de fatos, referindo-se à "guerra de informações" de líderes como Ferdinand Marcos Junior, sucessor de Duterte, Jair Bolsonaro e Donald Trump.

A vencedora do Nobel indicou, em palestra no Deutsche Welle Global Media Forum, na segunda-feira (20), estar muito preocupada com a versão de Bolsonaro para o movimento de Trump de desacreditar o processo eleitoral.

Segundo ela, para reagir a isso toda a sociedade brasileira vai ter que se engajar, com checagem de fatos, pesquisa sobre desinformação, litigância estratégica e ação das organizações não governamentais.

Ativistas de extrema direita se dizem censurados pelas plataformas de internet quando há moderação de conteúdo. Qual é o significado de liberdade de expressão em uma era em que a mídia social é usada por líderes populistas como arma? Os feeds personalizados [das redes sociais] fazem com que os vieses cognitivos de todas as pessoas sejam amplificados, usando essas escolhas algorítmicas. É uma radicalização dos pontos de vista em relação a tudo, desde democracia até vacinas até mudança climática, diretamente para a terra plana.

O impacto começa como um reforço individual dos vieses, mas, no final, o que acontece é que a liberdade de expressão acaba sendo utilizada para sufocar a liberdade de expressão.

Você e eu já sentimos na pele esses ataques seletivos exponenciais, e entre as primeiras pessoas visadas estavam jornalistas, organizações de imprensa, políticos oposicionistas. Quando você é atacada 1 milhão de vezes, quando a desinformação de gênero está num ponto em que você é martelada até ser reduzida ao silêncio, o passo seguinte é substituir sua narrativa, certo? É uma estratégia que já funcionou da Crimeia à Ucrânia, das Filipinas ao Brasil, nos Estados Unidos e além.

No discurso do Nobel, descrevi as mídias sociais como uma bomba atômica que explodiu em nosso ecossistema de informação. O que estamos vendo acontecer hoje —o colapso da lei e ordem, o colapso dos freios e contrapesos da democracia—, isso é o que acontece quando há impunidade no mundo virtual. Ela leva à impunidade no mundo real.

Como se explica a vitória de Ferdinando Marcos Jr e Sara Duterte para presidente e vice nas Filipinas? É possível haver integridade de eleições se não há integridade de fatos? Não. Qual é a linha que separa a guerra de informação contra cidadãos e o livre arbítrio? Nas Filipinas, as eleições ocorreram em um momento crucial, após o lockdown devido à pandemia levar dezenas de milhões de filipinos a perder seus empregos, quando ainda havia um grande clima de medo e incerteza, após seis anos de Duterte e uma guerra às drogas muito brutal.

Marcos Jr pegou muitos dos mesmos temas de seu pai [o ditador Ferdinand Marcos, que liderou o país de 1965 a 1986] e prometeu unidade. Mas a faísca que realmente fez a diferença foi a tecnologia, as plataformas de mídia social. O momento em que a história de Ferdinand Marcos Jr mudou diante de nossos olhos foi em 2014, não por coincidência o mesmo momento em que a Rússia transformou a realidade da Crimeia —e, aliás, as metanarrativas plantadas em 2014 são as mesmas razões apresentadas para invadir a Ucrânia hoje.

Assim, em 2014, Ferdinando Marcos Jr começou a usar o YouTube e o Facebook para aumentar seu alcance. Eu me recordo de um vídeo em que ele era um guerreiro de "Star Wars" com o sabre de luz, um Obi-Wan Kenobi, e vídeo teve desempenho fenomenal no TikTok.

Venho falando disso há seis anos. Essa tecnologia precisa ser contida. Ela está roubando o livre arbítrio. Uma vez democraticamente eleitos, eles demolem a democracia de dentro para fora. Quero dizer, vejam, Hitler foi democraticamente eleito, não? Não preciso dizer nada ao Brasil.

Quão eficiente precisa ser uma operação de informação para você apagar o passado de uma ditadura como nas Filipinas? As pessoas simplesmente esqueceram ou nunca souberam que houve uma ditadura? Eu adoro uma frase do [escritor tcheco] Milan Kundera que usei muito no dia das eleições nas Filipinas: "A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento". Eu me tornei jornalista porque acredito que informação é poder, mas éramos responsáveis por esse poder e as coisas avançavam muito mais devagar. Hoje, não. Criaram uma ferramenta de inteligência artificial que redige 30 mil artigos de ódio em menos de 24 horas. Uma máquina de ódio.

Líderes que usam as redes sociais como armas como Narendra Modi, na Índia, Viktor Orban na Hungria, que também faz aparelhamento da mídia tradicional, e Rodrigo Duterte todos foram reeleitos ou conseguiram eleger o sucessor. O que isso significa? O que funciona contra essas operações de informação? Neste exato momento, estamos impotentes. No longo prazo, é preciso educação. No médio prazo, é legislação. E, no curto prazo, é preciso ação coletiva. Precisa ser uma abordagem de toda a sociedade para tentar redefinir o que significa engajamento cívico hoje. Foi o que tentamos fazer para nossas eleições em maio. É o que Brasil vai precisar fazer para as eleições de vocês.

É preciso perguntar se as pessoas realmente querem viver num mundo onde se pode manipular todas as pessoas ou onde a democracia é destruída e não vivemos numa realidade compartilhada. Estamos em 2022 e a situação está piorando. Eu estou apostando minha liberdade nisso, na ideia de que podemos fazer alguma coisa.

Você tem enfrentado assédio judicial intenso. Quantas ações judiciais ainda estão correndo contra você? Em 2017, havia 14 investigações e acusações criminais, isso acabou caindo para 11 e depois para 10 mandados de prisão em 2019. Em menos de dois anos, emitiram dez mandados de prisão contra mim. Tive que pagar fiança dez vezes. No início de 2019 eu estava passando até 90% do meu tempo com advogados e em tribunais. Fui condenada em um dos casos, por ciberdifamação, e estou recorrendo.

Eu não escrevi, não editei, nem supervisionei o artigo que gerou o processo. E isso ocorreu num momento em que a lei que supostamente violamos ainda não existia. Agora, em 2022, estão para sair as decisões judiciais sobre cinco indiciamentos por evasão fiscal. Espero que haja justiça, mas as acusações criminais significam que já perdi liberdade. Por um período, não tinha autorização para viajar. O Nobel ajudou, me autorizaram a viajar novamente.

Você acha que o modelo de negócios da imprensa tradicional é sustentável? Esqueça os anúncios, eles já morreram. O que aprendi é que no curto prazo vamos ter que colaborar, colaborar, colaborar. Mas, no curto prazo, precisaremos de ajuda, nós, a mídia independente, e isso é parte da razão por que concordei em liderar o Fundo Internacional para Mídia de Interesse Público. Trata-se de um grupo lançado em 2019. Ele vai tentar levantar recursos de assistência ao desenvolvimento no exterior (ADE) de países democráticos.

Qual é o tipo de regulamentação mais urgente no mundo? A reforma ou revogação da Seção 230 da Lei de Decência das Comunicações dos EUA, que essencialmente conferiu impunidade a essas plataformas. Elas podem injetar porcaria tóxica, ódio, teorias conspiratórias diretamente em nosso sistema nervoso, com impunidade, e isso levou à ruptura dos freios e contrapesos e do Estado de Direito no mundo real.

Portanto a primeira: é preciso haver responsabilização. Há a outra parte que anda de mãos dadas com isso: as organizações de notícias também têm sido forçadas a fazer parte desse modelo de capitalismo de vigilância, ou seja, esse mesmo modelo está determinando qual jornalismo sobrevive, e não é o melhor jornalismo que ganha o maior alcance. Na realidade, são as mentiras que ganham o maior alcance.

Você recebe ameaças online e offline, foi presa, foi xingada das piores coisas. Quanto disso está diretamente relacionado ao fato de você ser mulher? Oh, meu Deus, tudo. A desinformação de gênero é um fenômeno global. Mulheres em todos os países do mundo estão sendo atacadas dessa maneira, e não são apenas mulheres jornalistas, mulheres políticas. Quando isso acontece, muitas políticas mulheres optam por não se candidatar, muitas jornalistas mulheres optam por abandonar a profissão, o impacto é real.

Como você encara a relação de Bolsonaro com a imprensa? Bolsonaro era um candidato de extrema direita, marginalizado, até que o YouTube o trouxe para o mainstream. A estrutura de incentivo das redes sociais favorece mentiras, ódio e teorias conspiratórias. Jornalistas e organizações noticiosas não temos uma chance nesse mundo. Então Bolsonaro vira mainstream e seu comportamento autorizou as pessoas a darem vazão ao pior lado delas. Duterte, nas Filipinas, e Trump, nos EUA, também fizeram isso.

A tática de Bolsonaro em relação à imprensa é igual ao que acontece nas Filipinas. Marcos não concedeu entrevistas de verdade, em que ele tivesse que responder a perguntas duras de jornalistas. O que Marcos e Bolsonaro fizeram foi criar sua rede própria de blogueiros e influenciadores. E isso está ligado ao fato de as plataformas de mídia social terem transformado os guardiões da informação, os jornalistas, em influenciadores.


Raio X

Maria Ressa, 58, jornalista filipino-americana, ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 2021. Cofundadora do site de jornalismo investigativo Rappler, foi alvo de perseguição pelo governo Rodrigo Duterte. Em 2019, chegou a ser presa sob acusação de violar uma controversa legislação sobre "difamação cibernética" devido a uma reportagem em que acusava um empresário filipino de atividades ilegais.

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