Wilson Gomes

Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Wilson Gomes

Brasil precisa de um choque de republicanismo

Passelivristas, impitimistas, lavajatistas e bolsonaristas não aguentavam mais patrimonialismo, clientelismo e corrupção

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Em célebre discurso no Senado, em 1989, quando se preparava para assumir sua candidatura à Presidência da República, o então senador Mário Covas fez um manifesto por uma reforma do Estado brasileiro com base em duas guinadas importantes: um choque fiscal e um choque de capitalismo.

A proposta partia de um diagnóstico crítico de que o país, de um lado, gastava sem ter dinheiro, financiava o empreguismo e teria atrofiado as funções típicas de governo, enquanto, de outro, incentivava, com políticas protecionistas, uma espécie de capitalismo em que a livre iniciativa não se expõe a riscos e é viciada em dinheiro público.

Mário Covas em seu apartamento, em São Paulo - Paulo Giandalia - 21.out.98/Folhapress

Covas perdeu a eleição, mas pelo menos um dos choques propostos, o fiscal, fez história durante o turno de guarda dos tucanos, do Plano Real até 2002. Quanto ao choque de capitalismo, há controvérsia. A crer-se em Henrique Meirelles, em 2018, e em Felipe D'Avila, em 2022, o Brasil ainda se deve a tal revolução do "verdadeiro capitalismo", seja lá o que isso for.

Talvez Covas tivesse razão, mas o fato é que o Brasil balançou por 20 anos entre o choque fiscal tucano e o choque de enfrentamento da questão social petista, à vera ou a meias, conforme quem julga, mas nada disso impediu que a política, em menos de dez anos, nos empurrasse ao atoleiro em que nos achamos.

Não há vergonha em admitir que, desde 2013, o país dançou como um ébrio à beira do abismo. O gigante acordou, foi para a rua, destravou o armário das viúvas da ditadura e da direita não republicana que até então não ousavam dizer o próprio nome, fez com que os feios, sujos e malvados, recalcados por séculos de Iluminismo e pensamento liberal, saltassem às ruas e aos mandatos eleitorais e, para coroar o desatino, achou justo empossar o obscurantismo e a barbárie na Presidência da República.

Mas o que andavam buscando as multidões e hordas de 2013 e 14, os novos movimentos e startups de fúria política de 2015 e 16, os novos atores da novíssima política de 2018, saídos da nebulosa digital para os mandatos que lhes deram o antipetismo e o sentimento antipolítica? Estavam à busca de que os passelivristas, os impitimistas, os lavajatistas, os bolsonaristas?

A resposta não é simples, mas há um denominador comum em qualquer interpretação que não os julgue apenas por suas consequências desastrosas: ninguém aguentava mais o patrimonialismo, o clientelismo e a corrupção, mórbido trio de práticas e mentalidades que resiste desde sempre à transformação republicana de qualquer Estado.

O patrimonialismo é uma mentalidade, materializada em costumes, valores e desenho institucional, segundo a qual o Estado é parte do espólio de quem governa, para gozo privativo.

Depois de eleitos os mandatários, desaparece a res publica, quem governa tem cargos para nomear, às dezenas de milhares, favores a pagar, acesso privilegiado a conceder, a Fazenda para pilhar e compartilhar com os seus. O sujeito ganha a eleição não para ter o direito de governar, segundo regras e com o bafo do povo e das instituições de controle no cangote, mas para desfrutar do poder de distribuir poder.

Há clientelismo, além disso, quando quem governa passa a usar os recursos da República para construir redes de favorecimentos em que os clientes que recebem acesso a esses bens (dinheiro, cargos, informações, contatos) contraem obrigações com o patrono que deles dispõe, numa relação perene de dependência e débito. E a corrupção... bem, todo o mundo sabe o que é corrupção.

O lavajatismo foi desfigurado pelas más intenções dos que a conduziram e virou uma resposta torta e mórbida para um problema sério e real: a corrupção, inclusive a corrupção do sistema de Justiça para fazer o justiçamento político dos adversários.

Imaginar que Bolsonaro pudesse plausivelmente ser o campeão da nossa redenção da política corrupta é um disparate que só o volume insano do ódio ao PT explica, mas o fato é que o patrimonialismo e o clientelismo —praticados à larga e gostosamente pelos Bolsonaros segundo pilhas de matérias e inquéritos— são uma desgraça do sistema político brasileiro.

Em suma, erramos de estação em estação na via-crúcis do nosso autoflagelo, fizemos loucuras que nos custaram vidas, sofrimento e a sensação tristemente disseminada de que este país é um caso perdido, mas o fizemos em busca de soluções para um problema brasileiro real.

Sim, o Brasil talvez precise de muitos choques para encontrar o rumo, mas a experiência desta última década perdida talvez esteja a sinalizar que o choque dos choques ainda não foi devidamente enunciado.

O Brasil precisa se livrar do vírus antirrepublicano que parasita o seu sistema político, o Estado e as relações privadas, sob pena de retrocesso, não importa se teremos em 2023 políticas públicas de direita ou de esquerda. O Brasil precisa com urgência de um choque de republicanismo.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.