Conheça iniciativas que visam combater o desperdício de comida em São Paulo

Aplicativo tenta conectar quem descarta alimentos e quem poderia aproveitá-los

Priscila Pastre Sofia Fernandes
São Paulo

​Toda quinta, por volta das 14h, a capixaba Raquel Blaque, 39, amarra um tule amarelo na cabeça e vai à xepa. "Nega, pode pegar tudo aqui!", grita um vendedor, chamando-a pelo apelido, sobre verduras de sua banca que não resistiriam à próxima feira.

Ela pega a banana jogada na sarjeta, que vai virar um doce, a manga com manchas na casca, que resultarão em um chutney, aparas de mandioca, que ferverá longamente com limão, sal e polvilho azedo até chegar ao ponto de queijo, o seu mandioqueijo.

​A transformação do que iria para o lixo em comida acontece no coletivo Casa Amarela, em Perdizes, onde Blaque mora com outras seis pessoas.

O movimento, que ela chama de Creative Commes —um trocadilho com Creative Commons (tipo de licença de direito autoral mais flexível)—, é uma das ações contra o desperdício de comida que pipocam em São Paulo.

Na falta de iniciativas de peso do poder público, grupos ou indivíduos estão investindo tempo, estudos e dinheiro do próprio bolso para chamar atenção ao problema ou saná-lo em alguma medida.

Numa das coletas do Casa Amarela acompanhadas pela Folha, foram reunidos cerca de 100 kg de alimentos —o suficiente para abastecer a casa e uma entidade ou ocupação. "É sintoma de miséria isso ser desprezado. Não é lixo, é recurso!", defende Blaque.

Ela chegou a São Paulo há oito anos e, desde então, é coletadora —ou freegan, na expressão em inglês. Vive do que a cidade dá. Filha de diarista e pedreiro, é formada em jornalismo e em gastronomia pela Gastromotiva, organização que dá cursos com projetos de impacto social.

Seu trabalho de conclusão de curso foi baseado na orientação de comerciantes para a distribuição correta de sobras que não estão com boa aparência para a venda, mas que ainda têm valor nutricional.

outras iniciativas na área, como o Instituto Guandu, criado por Fernanda Danelon, 45. O objetivo era coletar o lixo dos restaurantes e, em vez de desperdiçá-lo num aterro, usá-lo para adubar hortas dos estabelecimentos.

Um ciclo sustentável que aproximaria os cozinheiros do cultivo dos ingredientes que acabaria novamente no prato.

Danelon tentou criar um lugar para a compostagem do material. Esbarrou na burocracia. Chegou a levar sobras dos 25 restaurantes em seu próprio carro para compostagem em outra cidade. Descobriu que usinas de Campinas e Jundiaí tratam o lodo resultante de indústrias e o misturam com o resíduo urbano.

"O resultado é um composto que não pode ser usado em agricultura. Sem leis municipais que regulamentem a coleta, não teremos investimentos e tratamento só de restos de comida. Nem as empresas de lixo investirão nisso. Ganham para deixar tudo como está."

Há uma lei federal —a Política Nacional de Resíduos Sólidos— que prevê que todo o lixo gerado nas cidades do país seja tratado. Para Ana Paula Bortoleto, professora da Unicamp e especialista em engenharia urbana e ambiental pela Universidade de Tóquio, o problema é que, no Brasil, aterro (alternativa mais barata) é considerado tratamento.

Para seguir com o projeto, Danelon teve de repensar o modelo e mudar o foco: hoje, ela trabalha com a instalação de torres de minhocários e hortas cultivadas com o adubo proveniente deles em cinco casas de São Paulo, como a rotisseria Mesa III.

"Precisamos dizer para as pessoas que é preciso usar a cebolinha até o final. Contar que cada um de nós produz 600 g de resto de comida por dia —e somos 200 milhões."

Segundo a FAO (braço da ONU para alimentação e agricultura), o Brasil é um dos dez países que mais desperdiçam comida —quase 28% das perdas são na fase do consumo.

Ao se deparar com dados assim e pilhas de frutas jogadas no Ceagesp, há três anos, a advogada Daniela Leite, 44, começou o processo que levaria a um projeto que inclui conscientização em empresas e escolas e o aplicativo Comida Invisível. Nele, 3.000 restaurantes divulgam sobras da produção, de ingredientes a alimentos processados. Na outra ponta, entidades ou indivíduos podem ser beneficiados.

"A história de que os restaurantes não podem doar comida é um equívoco. Mas eles precisam ter a mesma responsabilidade na doação que têm na venda", diz Leite.

Milton Freitas, 48, dono de casas como Jacarandá e Antonietta, afirma que até mesmos partes que supunham interessantes, como ostras e cabeça de polvo, encontram destino —no caso, uma escola de gastronomia.

A academia também pesquisa a transformação em energia do alimento descartado. Em sua dissertação, Evelin Rodrigues, 28, doutoranda em prevenção de resíduo na Unicamp, mostra como a sobra diária de 20 mil bandejas de três restaurantes universitários poderia, com o apoio de empresas privadas, abastecer a demanda energética de um deles e de outro prédio do entorno.


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