Cogumelos silvestres paulistanos são aposta para a gastronomia do futuro

Chef coleta fungos comestíveis no Pacaembu; na zona sul profunda, espécies presentes na Mata Atlântica podem impulsionar a produção rural

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O Chef Leo Botto examina cogumelos em calçada do bairro do Pacaembu, em São Paulo Gabriel Cabral/Folhapress

São Paulo

O estrondo vinha de longe —ou essa era a impressão. O ronco tonitruante e contínuo interrompeu a palestra. Era uma oficina, oferecida pela Prefeitura, para pequenos agricultores da zona sul de São Paulo. Quanto ao ruído, pensei, era um avião.

Jorge Ferreira, o orador, arregalou os olhos em deslumbre e perguntou: “Bugios?”. Roseilda Lima Duarte sorriu e assentiu com a cabeça.

Os bugios, pequenos macacos que rugem como leões, são abundantes nas árvores que cercam o sítio de Rose. A pequena propriedade rural recebera outros agricultores para uma aula teórica e prática sobre a coleta de cogumelos silvestres comestíveis.

Numa trilha de 100 metros, o grupo recolheu 31 espécies diferentes de cogumelos nos troncos e na serrapilheira —a matéria orgânica do chão. Destas, dez eram comestíveis.

Espécies comestíveis coletadas em Parelheiros - Gabriel Cabral/Folhapress

O sítio de Rose fica no Jaceguava, região de Parelheiros. É a zona sul profunda, rural e um tanto selvagem que sempre aparece, no aniversário de São Paulo, em reportagens sobre cachoeiras e tribos indígenas. Pois bem, aqui estamos outra vez, por acidente.

A caça de cogumelos na cidade começou no Pacaembu, ao lado do estádio. É lá que o chef Leo Botto ronda praças e canteiros na companhia do pitbull Moreno.

Botto, que fechou o restaurante Boto (com um tê só) na pandemia, percebeu a variedade de fungos na vizinhança e vislumbrou a possibilidade de usá-los na cozinha.

Identificar cogumelos, contudo, é tarefa para quem estudou o tema. As espécies tóxicas são muitas, e ingeri-las pode ser letal. Para levar a cabo a exploração fúngica, o chef cercou-se de especialistas.

Cogumelos venenosos avistados próximos às espécies comestíveis, em Parelheiros - Gabriel Cabral/Folhapress

Um desses é justamente Jorge Ferreira, o instrutor de Parelheiros. Jorge cresceu em Paraty (RJ) e desde pequeno se empenhou em catalogar os recursos da floresta. Seu trabalho ganhou a admiração de chefs como Helena Rizzo e Paola Carosella.

“Caminhando em volta da casa do Léo, encontrei seis espécies de fungos comestíveis”, diz Ferreira sobre a primeira expedição com o chef. Cabe a distinção: comestível não é sinônimo de gostoso, significa apenas que não faz mal a quem come; os cogumelos bons para a alimentação são chamados de palatáveis.

Das espécies encontradas na cidade de São Paulo —bioma Mata Atlântica coberto por asfalto, concreto e outras tralhas—, várias têm aplicação culinária.

O Oudemansiella cubensis, sem nome vulgar, nasce em troncos e raízes de árvores. Tem textura delicada e notas aromáticas que remetem ao coco. O Favolus brasiliensis é rico em umami. O Lepista sordida só se torna comestível depois de cozido, quando fica com gosto de camarão.

No rolê com Botto, encontramos alguns exemplares de Oudemansiella na praça Prefeito Paulo Lauro, habitada por galinhas selvagens —algo excepcional, de fato, mas tentemos manter o foco nos cogumelos.

“Colho apenas os cogumelos que nascem no alto, nunca os do chão”, afirma o chef. Além das penosas, cães, gatos e outros animais menos fofos circulam livremente na paisagem urbana.

O maior senão do cogumelo silvestre paulistano, porém, anda sobre rodas. “Cogumelos são como esponjas para metais pesados”, adverte Marcelo Sulzbacher, doutor em biologia de fungos pela Universidade de Santa Maria (RS), outro consultor de Botto. A poluição de áreas com muita circulação de carros transforma cogumelos em doses de veneno de efeito cumulativo.

o chef Leo Botto caça cogumelos pela bairro do Pacaembu - Gabriel Cabral/Folhapress

O Pacaembu, apesar de arborizado e tranquilo, fica na área central da cidade; já Parelheiros tem muitos problemas, mas a poluição atmosférica não é um deles. Lá, atrapalham a conexão precária com a cidade distante —são 40 km e 90 minutos de carro até a Praça da Sé— e a baixa margem de lucro das verduras plantadas pelos agricultores.

A oficina foi parte de um programa que visa atenuar esses dois perrengues. O projeto Ligue os Pontos, da Prefeitura com financiamento filantrópico privado, capacita os roceiros da zona sul para que eles possam atender com profissionalismo a demanda da cidade ao norte.

Tal demanda, apesar de ainda incipiente, já é maior do que a oferta. Existe uma elite de chefs que busca fornecedores locais de alimentos orgânicos e produtos nativos —frutas da Mata Atlântica, mel de abelhas sem ferrão e algumas ervas silvestres se encaixam nessa categoria. Os cogumelos são um passo além.

“Cogumelos desidratados são pouco perecíveis e têm valor agregado altíssimo”, diz Ferreira. Mas ainda é longa a trilha que os agricultores de Parelheiros precisam percorrer até ganhar dinheiro com os funghi secchi paulistanos. “Para ter um volume rentável de produção, é preciso domesticar o cogumelo.”

Domesticar significa encontrar um modo de cultivar em um ambiente mais ou menos controlado, ainda que no meio da floresta. Antes disso vem a identificação das espécies que tenham, ao mesmo tempo, aceitação comercial e viabilidade de cultivo. Tudo isso exige muita pesquisa.

Dá para fazer e já foi feito no Amazonas. Os ianomâmi do Alto Rio Negro produzem e desidratam cogumelos que chegam à Casa Santa Luzia, nos Jardins, com etiqueta de R$ 25 no pacote de 15 gramas.

Das espécies encontradas em São Paulo, o Oudemansiella cubensis é um forte candidato a mascote da gastronomia regional. Depois da coleta no Pacaembu, Leo Botto preparou o cogumelo numa receita ridiculamente simples.

Prato preparado pelo chef Leo Botto com cogumelo capturado no Pacaembu - Gabriel Cabral/Folhapress

Besuntou o botão de fungo com óleo virgem de coco —para amplificar suas características naturais—, salpicou sal marinho e aplicou um fio de mel de jataí, levemente fermentado, que deu um toque de acidez. Delicioso e delicado.

É a vanguarda da alta gastronomia 100% paulistana: cogumelo silvestre DOC Praça das Galinhas.

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