Condenado por falsificação de vinhos vai ser extraditado dos EUA

Indonésio chegou a vender US$ 24,7 milhões em safras antigas em um único leilão, em 2006

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São Paulo

A qualquer momento estará em liberdade o mais famoso falsificador de vinhos dos Estados Unidos. E ao que se acredita, pronto para voltar à ação.

Mas não em solo americano. Em 2013, o indonésio Rudy Kurniawan, 44, foi o primeiro condenado no país por fraudar vinhos. Sua pena expirou em 6 de novembro de 2020, mas, por estar ilegalmente no país, foi para outra cela: a do Departamento de Imigração, onde aguarda a extradição.

O jovem Kurniawan, com visto de estudante, começou a frequentar degustações e leilões de vinhos na Califórnia em 2003, causando enorme impressão.

Parecia estupidamente rico, pelos vinhos que tinha e comprava. Era generoso com as raridades que levava para jantares. Demonstrava conhecimento do assunto, além de memória privilegiada e paladar afiado.

Discreto sobre sua vida (dizia viver de mesada da família de empresários), afável, ganhou admiração e amizade dos enófilos de Los Angeles —produtores de cinema, sommeliers, milionários donos de extravagantes adegas particulares.

De ávido consumidor passou também a vender raridades aos amigos e em leilões —em 2006, vendeu US$ 24,7 milhões (R$ 136 milhões) em vinhos em um único evento.

Três garrafas de vinho aparentando serem bem antigos
Vinhos falsificados por Rudy Kurniawan, condenado em 2013 e agora solto - AFP

Acontece que —como bem esmiuçado no documentário “Sour Grapes”, que esteve em cartaz no Amazon Prime— o pródigo sibarita vacilou ao colocar, num leilão em Nova York em abril de 2008, 22 lotes de vinhos Clos de la Roche e Clos St. Denis, do produtor francês Domaine Ponsot.

Alertado, o proprietário avisou ao leiloeiro que, entre as velhas safras oferecidas, havia algumas em que estes vinhos não foram produzidos. Fora discrepâncias nos rótulos e cápsulas.

Já o bilionário colecionador Bill Koch, suspeitando de garrafas que comprara, contratou detetives para investigar Kurniawan. O FBI saiu no seu encalço.

Tudo na vida dele era inconsistente —seu nome (o verdadeiro é Zhen Wang Huang); sua permanência no país (ilegal); e sua família, que longe de prósperos empresários, era ligada ao maior roubo a banco da Indonésia.

Em março de 2012 o FBI o prendeu encontrou em sua casa uma pequena fábrica de falsificação de vinhos, com centenas de garrafas antigas (vazias), aparelhos para retirar e recolocar rolhas, 18 mil rótulos, cola...

E anotações com fórmulas para produzir vinhos falsos. Seu paladar era tão afiado que ele fazia mesclas cujo sabor era convincente.

Por exemplo, para uma cópia do francês Château Mouton Rothschild 1945 (safra soberba de Bordeaux, e histórica, por ser a primeira após a ocupação nazista), a receita era: “meia garrafa Pichon 1988, um quarto de Cabernet do Napa e um quarto de garrafa Bordeaux oxidado”.

Em resumo, um bom vinho de boa safra e não tão jovem, da mesma região; outro da mesma uva e mais vigor (do californiano vale do Napa); e, para um toque de antiguidade, uma pitada de outro da região do Mouton, mas já oxidado (passado).

Suas habilidades lembravam as de falsificadores de arte capazes de pintar um Van Gogh tão convincente que somente grandes especialistas conseguem desmascarar.

Ele também contava com outra facilidade: os vinhos que vendia eram tão raros que mesmo um consumidor exigente dificilmente teria critério de comparação.

Sem reconhecer nenhum crime, Kurniawan foi condenado à prisão em dezembro de 2013. Agora, aguarda ser colocado em um avião para Jacarta designado pelo governo americano (e não com passagem própria de primeira classe, como chegou a reivindicar...).

Isto se não vingar o processo do colecionador Koch para que devolva US$ 3 milhões que gastou com vinhos falsificados. Kurniawan —que também deve milhões em empréstimos de bancos e a casas de leilão— alega estar falido.

Falsificação é uma praga que assola o mundo do vinho desde sempre. Recentemente foram apreendidas na China 50 mil garrafas falsas do australiano Penfolds, e na Itália, 11 mil garrafas do toscano Tignanello, vinhos de prestígio, mas de safras recentes e menos caros.

São bilhões de dólares movimentados por ano, e isto é apenas a ponta do iceberg, porque muitas vítimas —vinícolas e compradores— preferem guardar silêncio a admitir que foram fraudados, o que na prática acoberta os criminosos.

As maiores cifras são da pirataria em grande escala, de vinhos mais baratos vendidos aos milhares para um consumo de massa com menor escrutínio.

Já o indonésio trafegava numa área bem mais restrita e lucrativa, com ganhos astronômicos por garrafa —seu “Mouton Rothschild 45”, por exemplo, feito com US$ 150, ao ser vendido por US$ 10 mil “valorizaria” mais de seis mil por cento.

Acredita-se que, uma vez solto, Kurniawan não desperdiçará seus talentos. Mas tornou-se tão conhecido que dificilmente terá compradores (casas de leilão e colecionadores) para este tipo de vinho —magnatas, mesmo sem bom paladar, procuram ter informação de onde colocam seu dinheiro.

Especula-se que Kurniawan (cujas milhares de garrafas vendidas continuam, na maioria, em circulação) terá agora que se dedicar ao menos nobre setor do atacado, de falsificação em massa, de vinhos mais baratos. Como aqueles que nós, comuns mortais, bebemos.

RECEITA DE UM VINHO DE US$ 10 MIL

Como fazer um Château Mouton Rothschild 1945, conforme anotações do falsificador Rudy Kurniawan, há cerca de 10 anos; preços atuais da Califórnia


INGREDIENTES
+ Meia garrafa de Pichon Longueville safra 1988 (vinho de prestígio da mesma região do Mouton, de uma safra muito boa, já em seu auge quando o falsificador atuava há dez anos)
Preço da garrafa: US$ 250
Custo: US$ 125

+ Um quarto de garrafa de vinho Cabernet Sauvignon do Napa Valley (por exemplo, Caymus Vineyards 2018, muito bom ano)
Preço da garrafa: US$ 80
Custo: US$ 20

+ Um quarto de garrafa de um Bordeaux oxidado (algum vinho comum, já passado)
Preço da garrafa: US$ 20
Custo: US$ 5

PREPARO
Misture tudo e acondicione em garrafa com rolha e etiqueta de época com os dizeres “Château Mouton Rothschild 1945”

CUSTO TOTAL
US$ 150

LUCRO DE KURNIAWAN
US$ 9.850

Erramos: o texto foi alterado

Em versão anterior, o texto dizia que o documentário "Sour Grapes" podia ser visto na Amazon Prime Video, mas ele não está mais disponível. A informação foi corrigida.

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