Um sobrevoo sobre os livros de comida lançados e relançados neste ano conduz o leitor ao Brasil —este, que teve de ser vivenciado na marra. Eis um bônus da pandemia, ó pátria amada.
À época em que “Não É Sopa”, de Nina Horta, compilou crônicas dos anos 1980 e 90, sabia-se mais da comida inglesa do que da brasileira, dizia ela.
Se isso valia para a anêmica amostra de livros —e hoje não se aplica mais, pois esse mercado editorial inchou—, seu jeito de enxergar a nação, um país engraçado, no qual frutas nativas são exóticas para o próprio povo, persiste.
Essa obra, reeditada pela Companhia de Mesa, converteu-se em um produto sócio histórico, capaz de refletir sobre os hábitos alimentares de uma época. Nina destrincha, em passagens, um Brasil habitado por gente comum que vai à feira, cozinha e aprende sem uma biblioteca.
Rita Lobo partilha com a cronista certo desdém pela esnoberia na cozinha, e traz receitas típicas da mesa do brasileiro, feitas com utensílios caseiros, em “Rita, Help! Me Ensina a Cozinhar”, seu 11º livro.
São receitas que partem do binômio arroz-e-feijão e dão forma ao nosso pê-efe, que estrutura a dieta tradicional do país, pressupõem alimentos frescos e minimamente processados, e reforçam um cardápio equilibrado e mais acessível economicamente.
Serve às duas autoras a imagem que Antonio Candido (1918-2017) irradiou do escrever do rés-do-chão e não do alto de uma montanha —a linguagem é cotidiana, próxima do leitor e o leva à melhor compreensão dos problemas da sociedade, neste caso, ligados aos hábitos alimentares.
Ensinará mais sobre processos que fundam e estruturam o fazer culinário, a obra “400g: Técnicas de Cozinha”, referência na gastronomia que ganhou versão revisada e ampliada pela editora Nacional.
Não há publicações similares no Brasil a exibir ferramentas e conceitos essenciais que darão consistência a cozinheiros amadores e profissionais. O livro passeia por informações teóricas e práticas, à semelhança da dinâmica de sala de aula e reúne quatro profissionais que atuaram na sistematização do ensino da cozinha no país: Betty Kövesi, Carlos Siffert, Carole Crema e Gabriela Martinoli.
Nos interessa, em particular, o capítulo colaborativo da chef e pesquisadora Mara Salles. Em “Cozinhas do Brasil”, ela sugere sermos um povo com um jeito singular de comer, arranjado a partir da mistura, da fartura. Assim como Horta, que diz que nossa cozinha está perdida mato adentro, para Salles, os guardiões dos nossos ingredientes, técnicas e gestos estão escondidos nas periferias, na floresta, no sertão.
Ela contrapõe a cozinha do interior da Bahia, de comida substancialmente seca, típica do sertanejo, à do Recôncavo, na qual têm expressividade o leite de coco, o camarão seco, o dendê.
No dendê, o óleo sagrado das cozinhas religiosas que chegou com os primeiros escravos africanos, é que se frita o acarajé. Este foi identificado pelo jornalista e antropólogo Bruno Albertim como o relicário mais poderoso de Salvador.
O registro está no livro “Nordeste: Identidade Comestível”, resultado de densa pesquisa etnográfica do Museu do Homem do Nordeste. Lançado neste ano, traduz o habitante dessa região a partir de seus hábitos alimentares cotidianos.
A cozinha baiana, aliás, é substrato comum de lançamentos e relançamentos recentes. É o caso de “Torto Arado”, de Itamar Vieira Junior, que neste ano recebeu o Jabuti de melhor romance, o mais importante prêmio da literatura brasileira.
Embora a comida não seja seu fio condutor, serve como recurso para dar carne e profundidade aos personagens e à atmosfera de um sertão árido, no qual o próprio leito do rio, sem água, acolhe sementes do plantio, que nem sempre germinavam.
Na história de duas irmãs negras criadas em uma fazenda latifundiária no interior, o dendê feito nos quintais e armazenados em garrafas de cachaça eram levados com a força dos braços à feira, sob o sol a castigar a fome.
Mais acadêmico e erudito é “Manuel Querino - Criador da Culinária Popular Baiana”, do sociólogo Carlos Alberto Dória e do pesquisador da cultura africana, Jeferson Bacelar.
Na obra, Querino (1851-1923) é símbolo da cultura negra pensante do século 19. Partem de sua obra clássica, “A Arte Culinária na Bahia”, para traçar o contexto sóciopolítico que extrapola a “mera coletânea de receitas de origem africana que o integra”.
Assim como a cozinha na Bahia se manifesta em pelo menos três demarcações, como Albertim explicita —a cozinha de substância, a sertaneja e a do azeite de dendê—, o Pantanal é mosaico relevado na culinária diversa.
Esse imenso território, recortado pelas águas de quase 200 rios e 300 tipos de peixes, despertou “Cozinha Pantaneira: Comitiva de Sabores”.
O chef e conhecedor sul-mato-grossense Paulo Machado e a jornalista Cristiana Couto rompem a estrutura clássica dos receituários e respeitam a relação dos pantaneiros com a comida.
São capítulos que refletem os hábitos alimentares em ambientes como a fazenda, o mercado e a cidade, com traços da herança indígena e das influências paraguaia, de japoneses e de libaneses.
Esses livros esboçam a complexidade e a singularidade das cozinhas brasileiras, que, neste ano de confinamento, tivemos o prazer de engolir.
Livros gostosos
NÃO É SOPA
Preço R$ 89,90 (432 págs.)
Autora Nina Horta; ed. Companhia de Mesa
RITA, HELP! ME ENSINA A COZINHAR
Preço R$ 19,95 (88 págs.)
Autora Rita Lobo; ed. Panelinha e Senac São Paulo
400G: TÉCNICAS DE COZINHA
Preço R$ 225 (400 págs.)
Autores Betty Kövesi, Carlos Siffert, Carole Crema e Gabriela Martinoli; ed. Nacional
NORDESTE: IDENTIDADE COMESTÍVEL
Preço: R$ 70 (224 págs, vol.1; 256 págs, vol. 2); download gratuito no site da Fundação Joaquim Nabuco
Autor Bruno Albertim; ed. Massangana
TORTO ARADO
Preço R$ 54,90 (264 págs.)
Autor Itamar Vieira Junior
Editora Todavia
MANUEL QUERINO – CRIADOR DA CULINÁRIA POPULAR BAIANA
Preço R$ 30 (252 págs.)
Autores Carlos Alberto Dória e Jeferson Becelar; ed. P55
COZINHA PANTANEIRA: COMITIVA DE SABORES
Preço R$ 80 (180 págs)
Autor Paulo Machado; ed. Bei
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