Nem cerveja, nem vinho, Cauína inova fermentando caju

Alquimista da Caatinga aproveita suco que seria desperdiçado e produz sem desmatar

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Letícia Quatel
São Paulo

Existem duas maneiras de ser revolucionário no mundo dos vinhos: uma é olhando para trás, e a outra, mirando onde ninguém mais olhou. O primeiro método foi adotado pelo produtor italiano Josko Gravner ao resgatar, nos anos 2000, as grandes ânforas e o jeito de fazer vinho no berço de tudo, a Geórgia de 6.000 anos a.C.

Gravner trouxe ao mundo o que hoje é chamado de vinho laranja. Por tabela, também ajudou a incentivar a onda de orgânicos, biodinâmicos e naturebas de toda estirpe.

Cauina, bebida fermentada do caju
Cauina, bebida fermentada do caju produzida pelo Alquimista da Caatinga - Guilherme Lins/Divulgação

O segundo método é o que move um projeto cearense chamado Alquimista da Caatinga. Com a ousadia típica dos transgressores, os fabricantes têm feito “espumante” a partir do caju.

A empresa de Fortaleza nasceu em meados de 2020 para trabalhar com elementos presentes no bioma cearense, e produzir fermentados alcoólicos de forma mais natural. O primogênito é a Cauína, bebida fermentada naturalmente, com 11% de teor alcoólico.

“O processo de produção ocorre pelo método champenoise”, diz Vicente Monteiro, criador do Alquimista da Caatinga. Por este processo, a segunda fermentação da bebida acontece na garrafa.

Embora a Cauína tenha cara de espumante, teor alcoólico de espumante, e seja feita pelo método mais tradicional de se produzir espumante, Monteiro sabe que ela se equilibra em um terreno minado.

“Não é uma cerveja e não é um vinho pela definição estritamente técnica. E talvez por isso seja inovador”, acredita.

O primeiro restaurante a incluir a Cauína na carta de vinhos foi a Enoteca Saint VinSaint, em São Paulo.

Para a proprietária Lis Cereja, especialista em vinhos naturais, orgânicos e biodinâmicos, apesar de a legislação de muitos países se referir a “vinho” apenas como o fermentado de uvas, existem pelo mundo muitas outras bebidas que se encaixam na categoria.

“Boa parte deles tem origem em uma antiga, longa e complexa tradição de bebidas alcoólicas ancestrais fermentadas”, afirma Lis. “É muito errada essa visão de que esse tipo de bebida começou depois da chegada dos europeus.”

Ela explica, ainda, que alguns autores não conseguem escolher entre o termo cerveja ou vinho para situações como esta. Assim, fazem referência a “vinho” para fermentados de frutas, e usam a palavra “cerveja” para fermentados a partir de grãos, tubérculos e raízes.

Longe da semântica e perto do bioma cearense, a alquimia de Vicente Monteiro nasceu por meio de uma pesquisa dentro da Escola de Gastronomia Social Ivens Dias Branco, em Fortaleza, em 2019.

“Fizemos 27 coletas em 27 plantas nativas entre flores e frutas dos três territórios: litoral, serra e sertão do Ceará”, explica Monteiro. “Ali, eu vi potencial para trabalhar com o caju.”

A opção não foi somente uma questão de identidade com a região. Para ele, também é uma escolha sustentável. “Além de beneficiar o pequeno produtor, eu não preciso desmatar para produzir e ainda consigo aproveitar muito suco de caju que é produzido e acaba desperdiçado.”

Até a escolha pelo nome vem de uma certa reciclagem, derivada do que ele considera uma mania cearense de juntar alcunhas. “Minha irmã, por exemplo, é Laurismar porque meus pais são Laura e Irismar. Já Cauína é a junção de cauin (bebida primitiva indígena) e cajuína (suco de caju típico no Nordeste)”, explica.

Wilson Neto se inspirou na obra de André Thévet, um frade francês que em 557 escreveu sobre a colheita do caju, para criar a pintura que estampa o rótulo da Cauína.
Wilson Neto se inspirou na obra de André Thévet, um frade francês que em 557 escreveu sobre a colheita do caju, para criar a pintura que estampa o rótulo da Cauína. - Guilherme Lins/Divulgação

Hoje, um ano depois de colocar a Cauína no mercado, com a produção de 1.500 garrafas, o projeto Alquimista da Caatinga já tem a segunda safra em andamento —são 200 unidades. A garrafa no site do fabricante sai por R$ 85.

Mesmo mirando a inovação de produzir bebida alcoólica a partir do caju, Monteiro não deixou, de certa forma, de fazer como o pai do vinho laranja, o italiano Gravner, referenciando o passado.

Fazer vinhos com outras frutas além da uva é um caminho que resgata a ancestralidade de obter fermentados alcoólicos, a exemplo das comunidades nativas de diferentes lugares do mundo.

“Acredito que o grande movimento brasileiro vai ser resgatar nossas próprias técnicas ancestrais de fermentados alcoólicos”, prevê Lis.

Para ela, projetos como o Alquimista da Caatinga ainda têm o olhar necessário para um estilo de vida sustentável.

“É driblar um sistema de produção e consumo que normalizou o industrializado em nosso dia a dia”, resume.


Pedúnculo É Brabo

O bartender Maurício Barbosa, que comanda o balcão do restaurante Tujuína, em São Paulo, desenvolveu a receita exclusiva de um drink com Cauína para a Folha.

Drink Pedúnculo É Brabo, preparado com Cauína, com receita exclusiva de Maurício Barbosa, do Tujuína
Drink 'Pedúnculo É Brabo', preparado com Cauína, com receita exclusiva de Maurício Barbosa, do Tujuína - Maurício Barbosa/Divulgação

Ingredientes

30 ml de gin Vitória Régia com infusão de gengibre e gomos de limão Taiti*

15 ml de shrub de cumaru**

espumante Cauína

3 gotas de solução salina***

uma fatia de limão para decorar o copo

copo sugerido: long drink

Preparo

Em uma coqueteleira, adicione o gin, shrub de cumaru e a solução salina. Encha com ¾ de gelo e bata por oito segundos. Coe dentro do copo com gelo e complete com Cauína. Decore e sirva.

Gin Vitória Régia com infusão de gengibre e gomos de limão*

400 ml de gin Vitória Régia

50 gramas de gengibre descascado

2 limões Taiti

Preparo

Descasque os limões destacando a casca com a parte branca e corte em gomos. Descasque o gengibre e corte em quadrados. Em um recipiente de vidro, coloque os limões, gengibre e o gin. Deixe infusionar na geladeira durante oito horas, e coe para uma garrafa.

Shrub de cumaru **

200 gramas de açúcar demerara

200 gramas de água filtrada

100 ml de vinagre de vinho branco

8 sementes de cumaru

Preparo

Em uma panela, coloque o açúcar, a água e o cumaru em fogo médio. Mexa para misturar e deixe ferver. Tire do fogo. Tampe e deixe esfriar. Depois, coe dentro de uma garrafa. Adicione uma pitada de flor de sal, vinagre e misture. Tampe e deixe na geladeira por uma hora.

Solução salina***

20 gramas de flor de sal

80 gramas de água

Preparo

Em um recipiente de vidro, coloque o sal e a água, e misture até diluir o sal.

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