Fora ter um ingrediente no título, o que a canção "Com Açúcar, Com Afeto", de Chico Buarque, tem a ver com espaguete à carbonara de uma cantina paulistana, ou com os livros do chef inglês Jamie Oliver?
Vamos começar por Oliver. Em entrevista ao jornal britânico Sunday Times (23/01), ele diz que agora contrata "equipes de especialistas em apropriação cultural" para avaliar suas receitas e evitar que elas distorçam ou ofendam tradições de outros povos.
Sucesso editorial e da TV ("The Naked Chef" estreou em 1999), ele é escaldado por vários episódios. Ele mesmo cita uma receita de 2011 com o inapropriado nome de "frango assado do império" (na verdade um tradicional frango tandoori indiano) como fruto do "caso de amor" (ou seria estupro?) dos britânicos com sua ex-colônia. Hoje, em seu site, ele a chama "frango assado com especiarias".
Em 2014, Oliver foi criticado por mudar ingredientes do arroz jollof, da África Ocidental. Em 2018, uma dirigente do Partido Trabalhista o acusou de apropriação cultural por lançar um arroz chamado Punchy Jerk Rice, que remetia ao jerk jamaicano —sem, porém, ser a receita original (jerk é uma marinada de especiarias, ou a carne nela marinada).
Acusações de apropriação cultural se abateram sobre outros chefs. Caso de Gordon Ramsay, que em 2019 abriu um "autêntico restaurante asiático" sem nenhum cozinheiro asiático, o Lucky Cat.
No ano anterior, o americano Andrew Zimmern (da série "Bizarre Foods") fora criticado ao anunciar que sua cadeia de restaurantes chineses Lucky Cricket pouparia o meio-oeste americano de "restaurantes de merda disfarçados de comida chinesa". Deu no The Washington Post: "quando chineses fazem comida chinesa americanizada para os brancos, Zimmern chama de ‘merda’. Mas quando ele faz, é ‘ótima’".
A inglesa Nigella Lawson foi a bola da vez em 2017, quando mostrou sua receita de carbonara substituindo os ovos crus por creme de leite.
O que nos leva às cantinas paulistanas, mestres na adaptação de pratos a ponto de criar clássicos italianados (mas não italianos) como o bife à parmigiana. Nelas, carbonara, como a de Nigella, tem creme de leite sim, da mesma forma que fettuccine à Alfredo di Roma (adicionar creme é bem mais fácil que, como em Roma, bater freneticamente a massa com garfo e colher, apenas com manteiga e queijo, para obter cremosidade).
Onde mora o problema? Não está tanto em adaptar pratos inspirados em culturas de fora, o que é inevitável e pode até ter bons resultados.
A "apropriação cultural" é nefasta quando perverte, de forma enganosa, o sentido original da receita (ou da música, ou do artesanato). Que tal Nigella Lawson e nossos cantineiros chamarem o prato de "espaguete ao molho branco", e não "à carbonara"?
Ah, faltou falar de Chico Buarque. Bem, será que Gordon Ramsay e Andrew Zimmern podem fazer "autêntica" cozinha asiática? Será que um baiano pode fazer um "autêntico" sushi?
Não sei —mas que podem fazer excelente cozinha chinesa ou japonesa, podem sim. O "lugar de fala" não é uma medida definitiva para a expressão artística, acredito, mesmo sabendo do risco de estar errado se generalizar para todos os campos esta afirmação.
Sei também que Chico Buarque não é mulher, e é capaz, com sua sensibilidade humana e artística, de retratar, como poucos (e poucas), pontos de vista femininos, como mostrou, entre tantas canções, nesta "Amélia" retratada em "Com Açúcar, Com Afeto".
A qual espero que ele volte a cantar, e que tenha vida tão longa quanto a de um bom bife à parmigiana de um cozinheiro cearense do Bixiga.
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